NOTÍCIA

Formação Docente

Quem será professor

Novo perfil de alunos que ingressam nos cursos de formação coloca em debate os problemas para dar conta da demanda por professores qualificados e os impactos da perda da atratividade da carreira docente para a Educação Básica atual

Publicado em 05/05/2014

por Cristina Charão

Guillermo Giansanti

Não bastassem os conhecidos dados de falta de atratividade da carreira docente, o perfil dos alunos que ingressam nos cursos de formação de professores – tanto em pedagogia quanto nas licenciaturas – tem mudado nos últimos anos. Diversas pesquisas indicam que, hoje, o estudante médio dos cursos voltados à carreira docente vem de classes sociais desfavorecidas econômica e culturalmente, estudou em escolas públicas, apresenta baixo desempenho em avaliações, é trabalhador e, muitas vezes, faz parte da primeira geração da família a entrar no ensino superior. Diante das atuais dificuldades da educação brasileira, com índices de aproveitamento preocupantes, quais serão os impactos, a curto e médio prazo, da entrada de professores que chegam à carreira carregando dificuldades acumuladas no seu histórico de vida escolar?

“De um lado, há algo positivo em termos de ascensão social”, comenta Patrícia de Almeida, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e uma das coordenadoras da pesquisa A atratividade da carreira docente no Brasil. “Mas esses estudantes vêm de um processo de escolarização com muitas fragilidades que um curso de formação não dá conta de superar”, reflete.

Com esse perfil, ao entrar na sala de aula, professores que enfrentam condições precárias dificilmente conseguirão atingir bons resultados com seus alunos que, por sua vez, irão dividir-se entre os que projetam sobre o docente a imagem de um profissional frustrado e mal pago, e os que levarão adiante suas dificuldades de aprendizagem e se tornarão, também, professores.

O ciclo do desinteresse pela carreira tem impactos imediatos sobre a qualidade da educação, especial­mente na rede pública. Patrícia lembra, por exemplo, que é comum que estados e municípios convoquem professores aprovados com a nota mínima nos concursos. Isso porque o desempenho dos licenciados nas provas é tão baixo que não se alcança um número mínimo de aprovações com notas superiores.

“O prejuízo para a educação é incalculável”, comenta Alberto Albuquerque Gomes, professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (Unesp), em Presidente Prudente, e líder do grupo de pesquisa Profissão Docente: Formação, Identidade e Representações Sociais.

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“Eu não escolhi”
Esse razoavelmente novo perfil dos estudantes de pedagogia e licenciaturas tem, de um lado, um componente estatístico. A expansão acelerada do ensino superior no Brasil nas duas últimas décadas, realizada por meio da abertura de vagas na rede privada, e as políticas de democratização do acesso levaram à universidade todo um novo contingente de alunos vindos das classes C, D e E. Como essas vagas foram abertas essencialmente nas licenciaturas, é uma consequência matemática que um grande número de alunos dessas classes esteja, hoje, nos cursos de formação de professores.

Alberto Albuquerque Gomes, que dá aulas para as turmas do primeiro ano do curso de pedagogia da Unesp, constata essas dificuldades a partir de sua prática pedagógica. “Faço um exercício com meus alunos há vários anos, pedindo para eles fazerem a árvore genealógica escolar, e os resultados são claros: são filhos de famílias com origem no campo e que ocupam funções simplificadas no mundo do trabalho – mesmo quando se trata de funções urbanas – e, geralmente, são os primeiro da família a conseguir diploma de ensino superior”, diz Gomes.

Ele lembra que, nesse contexto, chegar à universidade já é um sinal de ascensão social e que a opção pela pedagogia ou pelas licenciaturas acaba sendo marcada por certa ambiguidade: ao mesmo tempo que querem estar na universidade, os adolescentes têm de avaliar a oferta do curso possível – considerando questões geográficas, de concorrência no vestibular e, no caso da rede privada, de preço. “Todos os anos aplico um questionário perguntando: ‘por que você escolheu ser professor?’ A maioria responde: ‘Eu não escolhi.’”, relata Alberto.

Uma pesquisa realizada pelo professor Cláudio Nogueira, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com uma amostra de 512 estudantes de sete cursos voltados à formação de professores da UFMG mostra com precisão esta ambiguidade. A maioria dos estudantes – 50,8% – afirma que, na época do vestibular, tinha dúvidas se queriam ser professores. Quase 15% disseram que tinham certeza de que não queriam ser professores e apenas um terço, 34,6%, afirmou que entrou no curso com a certeza de que queria ser docente.

“Uma coisa é a escolha do curso de pedagogia ou licenciatura, outra coisa é a escolha pela docência”, ressalta Nogueira, sublinhando que essas decisões envolvem uma relação complexa entre gostos e oportunidades. Uma vez dentro dos cursos, os alunos parecem desenvolver alguma preferência pelo magistério. Cerca de 75% dos estudantes afirmaram que “serão” ou “talvez serão” professores.

No vestibular, os alunos de formação docente…

50,8% tinham dúvidas se queriam ser professores

15% tinham certeza de que não queriam ser professores

34,6% tinham certeza de que queriam ser professores

 

Hoje, quem faz pedagogia e licenciatura pensa que…

20% dizem que serão professores por toda a sua vida profissional

18% pretendem trabalhar apenasalguns anos em sala de aula

62% não sabem quanto tempo resistirão na carreira

1,3% considera o salário do professor “bom” ou “muito bom”

7% afirmam que as condições de trabalho são “boas” ou “muito boas”

As razões apresentadas para essa escolha têm a ver com o fazer docente e não com questões trabalhistas ou de carreira. A pesquisa de Nogueira mostrou que 74,4% dos estudantes que dizem querer ser professor consideram que o “gosto pela atividade docente” foi importante ou muito importante para sua decisão e 77,7% incluem entre as razões principais para a escolha o “papel da docência na transformação social”. “Também perguntei a eles se pretendem ser professores porque é fácil conseguir emprego, a jornada de trabalho é menor, tem férias duas vezes por ano e o percentual de respostas positivas já é meio baixo”, diz o pesquisador. Em outras palavras, a escolha não parece motivada por razões práticas.

“As condições de trabalho e a questão salarial contam contra essa escolha”, diz Nogueira. Contam contra também a permanência destes futuros professores em sala de aula. Entre os estudantes que expressaram o desejo de se tornarem, de fato, professores, apenas 20% dizem que o serão por toda a sua vida profissional. Cerca de 18% pretendem trabalhar apenas alguns anos em sala de aula e os demais 62% afirmam não saber quanto tempo resistirão na carreira.

Visão da carreira
Na pesquisa do professor Cláudio Nogueira, apenas 1,3% dos estudantes dos cursos de pedagogia e licenciatura ouvidos consideram o salário do professor “bom” ou “muito bom”. Os que afirmam que as condições de trabalho são “boas” ou “muito boas” somam em torno de 7%. “Ou seja, uma porcentagem muito pequena tem uma visão positiva sobre a carreira e sobre as condições de trabalho. Então, como você pode abraçar com força uma profissão em que você está se formando, tendo uma imagem tão negativa do seu mercado de trabalho?”, comenta o professor da UFMG. “É bastante compreensível que não se queira ficar muito tempo na profissão.”

Sintomaticamente, as razões para que estudantes universitários digam não querer seguir a carreira docente são semelhantes às razões para que jovens do ensino médio não cogitem cursos de formação de professores. Patrícia de Almeida, da Fundação Carlos Chagas, afirma que a questão salarial e de carreira aparece com um forte componente do cenário de desvalorização da profissão docente, mas não é o único.

As transformações no mundo do trabalho e a multiplicação das possibilidades de carreiras também jogam contra a escolha da docência como profissão, seja pela sobrevalorização de algumas áreas – como as de tecnologia ou as engenharias –, seja pelas próprias características da juventude de desejar o novo, o diferente. “Quando o jovem escolhe a docência como profissão, ele está escolhendo uma profissão da qual ele conhece o universo – como aluno”, comenta Patrícia.

Além disso, a proximidade com a profissão faz com que os jovens projetem uma imagem muito clara do que é o trabalho docente. “Eles conseguem avaliar o que é ser professor e, muitas vezes, as experiên­cias na escola não foram muito positivas”, diz a pesquisadora da FCC. E mesmo se a passagem pela escola for uma boa experiência pessoal, a imagem projetada dosprofessor como alguém que precisa de muita paciência e de muita dedicação aos estudos nem sempre bate com a projeção que os alunos fazem de si.

Outra característica do trabalho do professor também parece assustar os adolescentes: o sucesso e a satisfação dependem sempre do outro. “Se o aluno não aprende, se o professor não consegue envolver a sala são situações de frustração e, nas falas, isso aparece bem: ‘eu já vejo os meus professores, sei o quanto é difícil e não quero passar por isso’”, diz Patrícia.

Problema mundial
Como, então, quebrar esse círculo vicioso? Esta é uma questão sem respostas objetivas e que desafia não apenas o Brasil ou os países com sistemas educacionais com o mesmo perfil de universalização recente da Educação Básica e limitações de financiamento público. Um estudo realizado em 2005 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicou que pelo menos a metade dos 25 paí­ses pesquisados já enfrentava problemas para dar conta da demanda por professores qualificados e que todos demonstravam algum tipo de preocupação com o longo prazo. No quadro internacional, as questões se repetem: salários em queda, profissão socialmente desvalorizada, condições de trabalho preocupantes, professores que se sentem sobrecarregados com o volume de trabalho.

O estudo também registrou iniciativas de diferentes países para tentar valorizar o trabalho dos professores e reverter o quadro de desinteresse pelo ingresso na carreira e o abandono da profissão. Em geral, as propostas buscam melhorar a imagem da profissão docente essencialmente investindo em valorização e formação dos professores, tanto inicial como também nos processos continuados. Não se trata apenas de melhorar individualmente o trabalho dos docentes, mas de também reconhecer e reforçar publicamente a noção de que a profissão exige especialização e qualificação, exatamente como outras profissões tidas como “mais valorizadas”.

Outro detalhe em comum entre as diversas ações é a revisão dos planos de carreira, de forma a valorizar o conhecimento do professor sem retirá-lo de sala de aula, ou seja, sem que ele tenha de assumir funções administrativas para alcançar melhores salários. Os planos de carreira também têm sido pensados de forma a incentivar a distribuição dos docentes tanto geograficamente – por exemplo, em regiões de difícil acesso – como entre níveis de ensino. A heterogeneidade das exigências e condições para levar adiante a tarefa de ensinar, aliás, é um elemento que também precisa ser considerado.

Para Patrícia, da FCC, uma questão central é repensar a formação dos professores. Para ela, a forma de organização atual das diretrizes curriculares, que prevê inclusive que os cursos possam ser realizados em três anos, não dá conta da tarefa. “É preciso pensar que o curso necessita ensinar o que o professor vai ensinar, mas também ensiná-lo a ensinar. Em três anos, isso é uma missão quase impossível”, diz.

Formação a distância
Outro detalhe da atual oferta de cursos de formação de professores também desafia as políticas públicas e os formadores: o grande número de alunos sendo formados em cursos a distância. Do total de matrículas nos cursos de pedagogia e de formação de professores em 2012, um terço era na modalidade ensino a distância. No caso da pedagogia, a proporção é maior e quase a metade – 49% – dos alunos estão em cursos não presenciais.

Além de uma sobrecarga futura para as redes de ensino, que precisam investir pesado na formação continuada como uma forma de suprir as lacunas da formação inicial, a simplificação dos cursos superiores de formação de professores reforça a reprodução da imagem de que para ser professor não é preciso conhecimento ou especialização – o que contribui para a desvalorização social e salarial da carreira. “Um professor não é um bom professor apenas porque tem amor à educação, assim como a um bom médico não basta apenas amar cuidar do próximo. Ele precisa de conhecimento específico para ser um bom médico, assim como o professor precisa de conhecimento específico para ser um bom professor”, comenta Cláudio Nogueira.

No entanto, o professor da UFMG ressalta que se estará “tapando o sol com a peneira” se a crítica for direcionada exclusivamente ao processo de formação dos professores, uma vez que estes, por melhores que sejam, não darão conta de lacunas educacionais e culturais dos estudantes. É preciso recrutar os melhores alunos, estimular a escolha da docência como profissão. E isso começa na sala de aula, com professores que estejam satisfeitos em serem professores.

Universidade não compensa

Estudo financiado pela Fundação Lemann, realizado por uma equipe de pesquisadores de diversas instituições em 2008, indica que, de fato, os cursos superiores não conseguem dar conta de todas as dificuldades apresentadas pelos estudantes do ensino médio que desejam ingressar na carreira docente. Os pesquisadores analisaram os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e dos formandos em pedagogia nas provas do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) no ano de 2005.

Apenas 11% dos estudantes de ensino médio que prestaram o Enem naquele ano disseram querer trabalhar como professores. Desses, cerca de um terço teve desempenho considerado muito ruim. Dos estudantes que disseram querer ser professores, apenas um em cada dez estava entre os alunos com melhores notas no Enem. Já entre os alunos saindo da universidade e rumando para assumir a frente das salas de aula, o desempenho também não é excelente. Em média, a nota obtida pelos formandos em pedagogia no Enade 2005 foi 49, em uma escala que vai de 0 a 100.

 

De doméstica a professora
Elisabete de Fátima Silveira da Rosa
Hugo Dalpizzol

Ao longo da vida, Elisabete de Fátima Silveira da Rosa teve uma relação intermitente com a escola. Quando as finanças da família permitiam, estudava. Quando não, largava os estudos para trabalhar como doméstica. Nestas muitas idas e vindas, após o nascimento dos filhos, Betty concluiu o ensino médio. Conseguiu seu primeiro emprego fixo em uma clínica veterinária. A experiência fez com que ela se decidisse: iria trabalhar com animais. “Mas eu não tinha condições de cursar medicina veterinária, não passaria no vestibular. Então, pensei em fazer a licenciatura em biologia, que era um curso que existia aqui na região”, diz ela, que mora em São Luiz Gonzaga, interior do Rio Grande do Sul. “Mas não pra dar aula. Eu queria me especializar em zoologia.”

Só que a vida seguiu afastando Elisabete de seus planos. Ela casou, teve três filhos, separou-se e, acreditando que não daria conta de um curso superior naquele momento, decidiu-se por um curso técnico. A opção disponível era o Normal. “Jamais pensei em ser professora, mas, quando comecei o estágio, me apaixonei pelo trabalho com crianças”, conta. “Comecei a ver que eu podia ter uma influência real na sociedade.”

A paixão pela educação cresceu a ponto de ela voltar a estudar para entrar no curso de pedagogia. Aos 35 anos, tornou-se estudante da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, no campus de São Luiz Gonzaga, e a primeira pessoa da família a chegar ao ensino superior. Mesmo antes de terminar o curso, já estará nas salas de aula da região: com o diploma do curso Normal, passou em um concurso da rede pública estadual. Agora, aguarda ser convocada para assumir uma classe de anos iniciais. “Quero me especializar e trabalhar com Educação Especial e Libras”, diz.

 

Em busca de um sentido
Jonatan Magela da Silva
Guillermo Giansanti

Ao concluir o ensino médio, Jonatan Magela da Silva escolheu ser racional. Morador da Baixada Fluminense, filho de uma família humilde, estudante de escola pública que, na época, esforçava-se em um cursinho pré-vestibular comunitário para entrar na universidade, ele pensou na oferta de emprego e nos salários oferecidos aos economistas. “Consegui passar para ciências econômicas na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mas, no terceiro semestre, me dei conta de que aquilo não fazia o menor sentido para mim”, conta.

Desligou-se do curso e, poucos dias depois, viu o anúncio de abertura do processo de seleção do Consórcio Cederj, que reúne as universidades estaduais e federais do Rio de Janeiro e oferece cursos a distância (EAD). “Escolhi fazer História por uma busca de sentido”, diz Jonatan.

Prestes a se formar aos 23 anos, Jonatan acumula experiência sendo professor no mesmo cursinho pré-vestibular em que estudou. Aprovado em um concurso para professor da rede estadual, aguarda ser chamado para assumir o posto.

Ainda dividido entre o pragmatismo e o idealismo, Jonatan diz que seu plano imediato é dar aulas porque quer “colocar em prática a experiência que acumulou”. O salário e a estabilidade no emprego pesam pouco, mas o jovem frisa que “também não tem como viver no mundo das ideias”. Mesmo assim, Jonatan ainda sonha com voos mais altos: quer fazer o mestrado. Só não sabe quando será possível.

 

Resistência à história familiar
Luiza Americano Grillo

Arquivo pessoal

 Luiza Americano Grillo resistiu a escolher a pedagogia como curso de graduação. Neta de dona de escola e filha de professora, sempre viveu muito de perto as questões da educação. Aluna dos melhores colégios da capital paulista, quando terminou o ensino médio ainda não tinha certeza do que faria, mas os recursos da família garantiram a ela um ano na Itália, fazendo um curso de artes. “Morando sozinha tive bastante tempo para me conhecer melhor e aceitar que não tem problema trabalhar na mesma área que o resto da família. Acabei descobrindo lá que era com educação mesmo que eu queria seguir”, diz.

Na volta ao Brasil, tornou-se estudante da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Ao longo do curso, foi experimentando trabalhar como educadora em acampamentos, na Bienal de Arte, em ONGs. Às salas de aula da educação formal, nunca deu especial atenção. Até que uma nova oportunidade de morar no exterior surgiu: um programa de intercâmbio entre a USP e universidades europeias. Hoje, Luiza mora na Itália e cursa um semestre da sua graduação na Università degli Studi di Genova.

O que fará ao retornar para casa? “Não sei exatamente quais os meus planos, nunca achei que queria ser professora”, diz. Por enquanto, de todas as experiências acumuladas, a mais marcante foi como professora auxiliar no projeto Pró-Saber, que oferece formação complementar para crianças do bairro de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo.

Autor

Cristina Charão


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