NOTÍCIA
Os melhores romances possuem defeitos, os mais belos poemas podem desafinar numa de suas estrofes. Descobrir que determinada obra-prima é cansativa é uma bela descoberta literária
Publicado em 08/09/2014
Ilustração de Marina Papi para o livro “O leão filosófico, Serafim e outros bichos”, de Marlene de Castro Correia (Pequena Zahar, 2014) |
Certa vez, num grupo em que várias pessoas ligadas a editoras e livrarias conversavam, ouvi de uma agente literária: “Não tem jeito, gente, o entretenimento venceu e engoliu tudo!”.
Depois de um breve silêncio, fizemos alguns gestos de concordância. Animada com a reação da gente, a agente prosseguiu, em tom profético. Na sua avaliação, haverá cada vez menos espaço para quem quiser levar a sério questões como o “sentido da vida” ou o “valor do sofrimento”; pouco espaço também para “princípios”, “ideais” e “propósitos”; espaço quase nenhum para complexas reflexões que poderiam produzir em nós algo como a famosa corcunda de Søren Kierkegaard, pensador dinamarquês que parecia levar sobre as costas todas as angústias de Copenhague e do universo inteiro.
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A agente estava certa? O entretenimento venceu o aprofundamento? De fato, ninguém parece muito disposto a desenvolver cifoses filosóficas hoje em dia. Muitos de nós, ao contrário, queremos manter a espinha reta e o coração tranquilo, longe das infinitas inquietações. Ora, minha gente, já não é suficiente enfrentar as pressões profissionais, o trânsito doido, os telefonemas e e-mails inoportunos oferecendo todo tipo de produtos, e outros tantos males modernos e hipermodernos?
Boa parte de nossas leituras, conversas, passeios e viagens é pautada pela busca do prazer e da diversão. Para que cultivar a “dor do que não foi vivido”? Não é bem melhor ter aulas engraçadas e assistir a palestras motivadoras? Além de lidar com problemas reais, teremos de suportar também o castelo inacessível de Kafka, o hermetismo de Samuel Beckett e os longos parágrafos de Proust?
Não percamos a paz. São apenas perguntas, são apenas pontos de interrogação, como dizia o poeta Gonzaguinha. Mas ainda é preciso trazer uma questão: seria possível associarmos alegria e profundidade em nossas leituras?
“Sem as partes chatas”
Esta frase pertence ao título de um livro da escritora norte-americana Sandra Newman: História da literatura sem as partes chatas, da Editora Cultrix (2014). A ideia foi produzir um guia irreverente (e divertido) para ler sem medo autores que vão de Homero e Hesíodo a James Joyce e Rimbaud, passando por Virgílio, Dante, Shakespeare, Goethe e Balzac. São dezenas de autores clássicos, ingleses e franceses na maioria, quando o livro, após visitar a Antiguidade greco-latina e a Idade Média, ingressa no Renascimento e vai até meados do século 20.
Onde reside a chatura de uma literatura que deveríamos aplaudir? O que produz tédio e bocejo em obras que são reconhecidas como referências indiscutíveis da literatura ocidental dos últimos 2.800 anos?
A brincadeira consiste em tratar com leveza as elevadas pretensões dos escritores. E mostrar que por trás de grandes autores existem pessoas reais, gente como a gente, com talentos e limitações, pessoas que nasceram sem saber que, um dia, seriam vistas como indiscutíveis referências. Comentando, por exemplo, a maestria de Flaubert ao escrever Madame Bovary, diz Sandra Newman:
[…] a escrita de Flaubert é tão boa que o livro fica menos deprimente do que parece. A elegância desapegada de sua mente nos dá a impressão de que Flaubert vive em uma dimensão mais pura, até que nos lembramos de que ele morava com a mãe – quando não estava num bordel pegando doenças desagradáveis.
No fundo, Sandra Newman quer mostrar que nenhum grande autor deve ser superestimado. E que nenhuma obra-prima, em que encontramos altos e baixos, se lê com a mesma facilidade que encontramos em ouvir e cantarolar as nossas músicas preferidas.
Parte da cultura
Talvez o tédio e o bocejo nasçam da nossa maneira de ler (ou de não ler) os clássicos. Se os encararmos como o que são, prosa e poesia de qualidade e ao mesmo tempo marcadas pela natural imperfeição que se encontra em todas as coisas, saberemos apreciar melhor o que têm de apreciável.
A chatura faz parte da vida, e, portanto, da literatura. Se soubermos passar por cima dessa circunstância inevitável, sem lhe dar muita trela, acabaremos descobrindo o que há de atraente e permanente em autores que às vezes nos parecem tão sagrados, tão distantes.
Adquirir cultura exige realizar leituras obrigatórias. Essa obrigatoriedade tem uma razão de ser. Mas, por outro lado, não há tempo para ler tudo e não somos obrigados a gostar de tudo o que lemos.
Os melhores romances possuem defeitos, os mais belos poemas podem desafinar numa de suas estrofes. Na obra completa de um grande escritor sempre há coisas incompletas e questionáveis. Por vezes, é preciso atravessar dezenas de páginas de um livro para encontrar uma imagem inesquecível, uma metáfora genial, uma ideia brilhante que nos salvará para sempre da superficialidade.
Até a pior chatura tem a sua graça. Faz parte do nosso aprendizado. Descobrir que determinada obra-prima é cansativa é uma bela descoberta literária! Entender que nem tudo se entende na leitura de um autor consagrado nos faz entender, afinal, que a vida, muitas vezes, é igualmente incompreensível.
*Gabriel Perissé é professor e pesquisador da Pós-graduação em Educação da Universidade Católica de Santos – www.perisse.com.br