NOTÍCIA
Se em papel impresso, tablet ou celular, leitura se faz com os olhos bem abertos
Publicado em 10/07/2013
As resistências foram e são naturais. E estão sendo naturalmente vencidas pela passagem do tempo e a chegada das novas gerações. O não acesso ou o acesso restrito ao livro digital em várias partes do mundo serão análogos ao acesso nulo ou limitado a coisas muito mais essenciais como alimento e água, ainda hoje lamentavelmente verificados no planeta, e no Brasil.
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Para a educação, temos um instrumento a mais, que depende da capacidade de leitura. O importante é garantir a compreensão, a reflexão e os desdobramentos. Se em papel impresso, tablet ou celular, leitura se faz com os olhos bem abertos. E com a mente plugada no sentido do verbo.
A questão fundamental será sempre a mesma: conteúdo e leitorado. Conteúdo rico e leitores ativos. E que dentre milhões de leitores surjam milhares de autores.
Acesso depressa
Há no livro digital uma grande vantagem a considerar. Quando necessito de um livro impresso, tenho de buscá-lo fisicamente. Se ele está à mão, ótimo. Caso contrário, o esforço não é pequeno e a paciência tem de funcionar. Pois o livro é objeto, ocupa lugar e tem seu peso. Viajar com 50 livros, por exemplo, dá trabalho. As mochilas ficam mais leves. Também a mochila dos estudantes!
O acesso rápido ao livro eletrônico torna a vida mais ágil. Armazenar centenas de livros num pen-drive, e carregá-los dentro do bolso, permite consultas variadas, mais descobertas e citações. E pela internet é possível alcançar muitas obras, para além da realidade feita de papel e impressão. A imensa maioria em língua inglesa, obstáculo considerável para nossos alunos.
O pioneiro Projeto Gutenberg oferece (no dia em que fiz a consulta, 31/05/2013) 42.741 livros gratuitos para download. Destes, apenas cerca de 600 são em português, e a grande parte destes autores viveu no século 19. Ainda temos de ganhar espaço e tempo.
A leitura sem pressa
A rapidez do acesso deveria caminhar com a calma da leitura. Leitura sem pressa, sem pressão. De que vale ter acesso a tudo num segundo e não compreender quase nada? Leitura das relações dentro e fora do texto, com agilidade, sem perder profundidade.
Quando li Grande sertão: veredas pela primeira vez, eu catava e contava quantas vezes Guimarães Rosa escrevera: “viver é perigoso”. Se naquela época tivesse à disposição o livro digitalizado, um comando de busca daria a resposta. Mas essa resposta, por mais precisa que fosse, contribuiria pouco para o entendimento da frase, tão simples e tão complexa. A máquina deve dar passagem à mente que interpreta.
“Viver é perigoso”, repete o personagem Riobaldo, não só porque o jagunço se viu em lutas e tiroteios, fugindo da morte e produzindo morte. O perigo real está dentro de nós mesmos. A condição humana revela-se problemática a cada passo. Entre Deus e o diabo, entre o sim e o não, entre a esperança e o desespero, vamos fazendo e contando nossas histórias, nossas aventuras.
Garantir o essencial
Viver com tanta tecnologia também é perigoso. A rapidez pode produzir facilidades ilusórias. Voltando ao exemplo do Grande sertão, ler e reler, ir de linha em linha à caça da frase “viver é perigoso” era caminhar pelas veredas perigosas. Poderia me perder. Poderia me encontrar.
A permanência do livro “normal” será, então, uma forma de garantir o velho (eterno…) prazer de ler do princípio ao fim. E depois reler o mesmo livro, como quem revisita um lugar para constatar as diferenças entre lembrança e realidade. No caso brasileiro, precisamos ainda continuar criando e aperfeiçoando leitores, pois muitos não chegam ao livro digital porque ainda sequer se habituaram a folhear o de papel.
Sabemos que ler não é sempre assim: leitura total. Há várias práticas de leitura parcial avalizadas: consultar um livro para achar determinada informação, ler algumas páginas por curiosidade, concentrar-se numa passagem do livro, ou num poema de uma antologia, ler ao acaso para inspirar no leitor a hora e a vez de escrever.
A cultura escrita não se perderá. Transformar-se-á (ou voltará em antigos formatos, como esta mesóclise démodé), enfrentará crises e renascimentos, mas nossa dimensão homo scribens continuará ativa, mesmo que as expressões latinas estejam mortas para muitos leitores.
O essencial (aliás, vale lembrar que esta palavra remete ao verbo latino esse, que significa “ser”) não se perderá. Embora o livro digital se pareça cada vez menos com o antigo livro, embora as fronteiras se dissolvam e as linhas se movam, ainda precisamos nos alfabetizar para as entrelinhas, como ensinava o mesmo Guimarães Rosa.