NOTÍCIA
Yolanda Reyes prega também que se leia literatura em voz alta aos professores
Publicado em 31/08/2015
A escritora colombiana Yolanda Reyes: vínculo especial com o Brasil |
Após um longo dia de atividades no Seminário Internacional de Educação Integral, organizado pela Fundação SM, em São Paulo, a escritora colombiana Yolanda Reyes se diz cansada pela longa exposição à língua portuguesa, que lhe exige atenção redobrada. Ainda assim, mantém o sorriso afável, a simpatia e a disposição para falar dos temas em que se especializou: literatura e leitura na primeira infância.
Fundadora e diretora do Instituto Espantapájaros, de Bogotá, que se dedica à formação de leitores jovens e adultos e também de mediadores de leitura, a escritora vê com apreensão a ação dos gestores educacionais que querem apressar o processo de alfabetização. “Estamos tendo uma visão muito utilitarista da leitura.” Mas entusiasma-se com o que chama de invenção da primeira infância na América Latina, processo que vem ocorrendo principalmente a partir deste século. E dá sua receita para que os professores se tornem leitores: criar ambientes inspiradores e ler em voz alta para eles. Leia, a seguir a entrevista especialmente concedida à revista Educação.
Quais as principais semelhanças e diferenças entre o Brasil e os outros países que você tem visitado no que diz respeito à leitura e ao letramento?
Vejo como semelhança o fato de que há um interesse mais ou menos recente pela primeira infância. Me agradou saber que há um documento básico de linhas pedagógicas para a educação infantil trabalhado por especialistas, mas que vai ser submetido a um processo de consulta, com a participação de mais gente. Parece que esse é um caminho que está sendo delineado na América Latina. Na Colômbia, que conheço melhor, está acontecendo o mesmo, a “invenção” da primeira infância, pois é um conceito muito recente em políticas públicas na América Latina. São interessantes as discussões sobre o alcance da alfabetização no Brasil e na Argentina, sobre a pertinência ou não do ingresso da letra escrita, de aprendizagem escrita na educação infantil. Creio que haja avanços sob esse aspecto, por não se querer uma alfabetização per se, em se prevenir o máximo possível para que o tempo de brincar e correr não seja sacrificado em prol de uma alfabetização prematura. Aí há toda uma gama de posturas, umas mais radicais do que outras, e isso está em pauta. Em relação ao Brasil, tive a sorte de trabalhar aqui quase quatro anos, de vir para cá e ser bastante lida. Há um livro meu chamado A casa imaginária (Editora Global), mais lido aqui do que em qualquer outro lugar da América Latina.
Você arriscaria dizer uma razão para isso?
Não sei exatamente o que acontece, mas aqui tenho uma grande conexão com as pessoas, sinto que há uma paixão que compartimos, é algo intuitivo.
Seja na educação infantil, seja na educação como um todo, vemos uma visão muito instrumental da leitura e do próprio processo educacional. Se essa visão prevalecer, quais podem ser as consequências?
Estamos tendo uma visão muito utilitarista da leitura. Todos os nossos países estão muito preocupados com a educação, e temos de ver de onde vem essa preocupação. Falo com mais propriedade da Colômbia, mas acredito que haja uma pressão em toda a América Latina por bons resultados nas provas internacionais. Com certeza, os que sabem ler terão um melhor desempenho não somente nas provas. Mas a relação que os nossos políticos finalmente enxergaram, que é muito elementar, é que os alunos não entendem a pergunta de matemática porque não podem lê-la, e vão mal porque não entenderam a pergunta das provas da OCDE, do Pisa. Com esse critério tão instrumental, tão imediatista, pensou-se que a solução seria que os alunos aprendessem a ler, e que aprendessem rapidamente. Os políticos não duram muito tempo e querem resultados rápidos, pois a sociedade também faz muita pressão. Há uma distorção perversa com relação a essas provas. Serviram para que começássemos a nos medir com relação ao mundo, e para fazer pressão política pelos péssimos resultados que tivemos; contudo, geraram essa obsessão por lograr resultados rápidos – da escola e dos governantes. Nós, que sabemos disso, temos de estar todo o tempo dizendo “vejam, isso é mais lento do que parece”. Uma primeira alfabetização instrumental não garante a formação de leitores. É diferente falar de aproximação do código alfabético e de formação de leitores; é diferente falar de aprendizagem de leitura e escrita e falar de cultura escrita. Há um grande vazio entre uma coisa e outra. Ao conversar pouco tempo atrás com autoridades do meu país, eles me disseram: ‘para as crianças pobres, não temos tempo para fazer o que vocês recomendam. E seguimos pensando que para aqueles que têm mais carências, devemos fazer rápido’. Mas a linguagem é um fenômeno que vai muito além do que observamos, e o que vemos é só a ponta do iceberg de um processo muito mais complexo, que tem que ver com o pensamento, com a construção da língua oral e escrita, com a construção do sentido e do simbólico. E isso requer tempo.
Você menciona quatro pilares da educação infantil – artes, brincadeiras, literatura e exploração. Que papel a literatura desempenha entre esses pilares e como se conjuga com os outros?
Em muitas orientações para a educação infantil se pensa – com razão – que a literatura deveria estar englobada em artes, porque é a arte da palavra. É colocada à parte não por não ser uma arte, mas porque tem um peso muito grande na construção da primeira infância. Nos primeiros seis anos nos acontecem coisas muito importantes, aprendemos a nos comunicar de todas as formas possíveis, chorando, gritando, atraindo a atenção do outro, falamos e nos aproximamos da língua escrita. Todas essas operações de linguagem, que faremos pelo resto da vida, têm origem aí. A literatura é o texto que nos lega a cultura, em que está posta a particularidade humana por meio de símbolos verbais. Para a criança que chegou a este mundo e tem de abrir caminho no simbólico e buscar um lugar onde tem de construir sentido, afinal isso é o mais importante que nos acontece, a literatura é esse grande texto escrito a tantas mãos em que as crianças podem começar a mostrar-se e a construir o sentido. É uma operação de grande importância. E também as linguagens artísticas, a música, tão irmã gêmea da poesia na primeira infância, as artes plásticas e todas as possibilidades de expressão visual, estão muito presentes na literatura contemporânea.
Vivemos sob alta exposição às imagens. Ainda que muitas venham acompanhadas de palavras, parece que há prevalência do discurso audiovisual. Até que ponto isso interfere ou muda a literatura?
O universo visual, ainda que se tenha de aprender a lê-lo, é mais fácil de ser lido, porque se pode percebê-lo por completo. Já a escrita, para as crianças, implica ir de pedaço em pedaço, unindo-os, o que é mais difícil. É uma visão tubular, central, em que não se percebe o significado completo sem percorrê-lo todo. Na imagem é diferente, podemos ter todo tipo de aproximação, ainda que depois façamos todo o tipo de decifração. Essa aparente facilidade, essa globalidade da imagem faz certamente com que seja mais simples de lê-la. Por outro lado, falando de literatura, os artistas plásticos, visuais, quase que se exilaram do mundo pictórico, pois agora a arte é mais conceptual e já não há tanta gente fazendo ilustrações, pinturas. Todas essas pessoas foram migrando para a produção de livros infantis, que se transformou numa arte de enorme complexidade. Por isso, sinto que há muito mais desenvolvimento dos livros-álbum, por exemplo, do campo da imagem, em detrimento do campo narrativo. Para os adultos, é mais fácil ler os livros-álbum [para as crianças].
Isso de alguma forma mudou seu processo de criação?
Como autora, sigo querendo escrever histórias em que as palavras tenham grande peso, pois é o que sei fazer. Não digo que o outro jeito não seja importante, mas continuo a pensar da mesma forma, em escrever com palavras, é a minha ferramenta. Há quem escreva com palavras e imagens, mas sigo pensando em termos de linguagem, de sonoridades, de matizes.
No texto “O ensaio como forma”, [Theodor] Adorno diz que apenas com palavras conseguimos elaborar conceitos. Concorda com ele?
A escrita implica uma tomada de distância e uma organização temporal. Pensar por escrito é classificar tudo outra vez, é passar a uma ordem ditada pela linguagem e nessa ordem o pensamento se reorganiza. [O escritor argentino] Bioy Casares dizia: “sobre muitas coisas não saberia o que penso, se não tivesse tido de escrevê-las”. Sou escritora e subscrevo a tese de Adorno. De minha parte, também não saberia o que penso sobre muitas coisas se não tivesse de passar pelo longo túnel da escritura, de não saber o que vai antes e o que vai depois. O trabalho da escrita é um trabalho de ordenar o pensamento, é revolver o que se tinha por certo no oral. Se estivesse concedendo esta entrevista e tivesse de escrevê-la e não falar, estaria ainda no primeiro parágrafo, pois tudo isso que estou dizendo você pode rearrumar, editar. Mas se você não estivesse presente eu teria de fazer um exercício, um esforço grande de colocar as palavras sobre o que estão dizendo a voz, o gesto, o olhar.
Há um revisionismo histórico que tenta modificar narrativas infantis, em nome de uma ideia de correção, como a cantiga popular “Atirei o pau no gato”, ou as histórias de Monteiro Lobato. Como vê isso?
A literatura é a marca que alguém deixou de sua experiência, de sua maneira de pensar. Se isso é o que Monteiro Lobato pensou, se esse foi o trabalho que ele deixou, isso é importante. Quando leio literatura, me encontro com uma pessoa que viveu e pensou em um determinado tempo, encontro as marcas do pensamento humano. Essas visões são muito estreitas, nos afetam muito. Na Colômbia, alguém me disse que a canção [cantarola] “uno, dos, tres indiozitos” foi contestada. Diziam: “por que contar os índios?”. Não é literal! Estamos despojando a literatura das marcas que ela deixou, mas também das formas de pensar. A literatura não se preocupa apenas com quem pensou, mas também como pensou. Não se trata apenas do discurso direto. As crianças podem aprender também que Monteiro Lobato viveu em uma época em que a sociedade brasileira tinha outra maneira de pensar e enxergar a vida.
Ao falar do trabalho do Instituto Espantapájaros, você mostrou crianças muito pequenas fazendo fichas de leitura. O que as levou a querer fazê-las?
Tornou-se um ritual na retirada dos livros. Começou como uma necessidade de saber quais livros as crianças levavam para casa, pois desde que o Espantapájaros começou a ideia é que a biblioteca os apresente para que as crianças escolham e levem para casa, que façam parte de suas vidas. Então, tínhamos de ter um controle de que livros levavam. Fazíamos a ficha e os adultos a assinavam. Mas as crianças queriam sempre elas mesmas assinar! Falamos “claro, escreva seu nome aí”. E tornou-se um ritual. Desde os oito meses elas vão à biblioteca. Em princípio põem uma marca na ficha e a professora ou a pessoa que está mediando escreve os livros que estão levando. E quando devolvem, podem levar outros. E isso não tem muito que ver com o fato de a assinatura ter letras ou não. Mas, curiosamente, passamos a ver a transformação dos rabiscos em letras, das crianças dos oito meses aos quatro anos, cinco anos, a evolução dos traços, as marcas que num primeiro momento ainda não são exatamente de escrita, mas o sinal de cada um, como se dissessem “este sou eu, me comprometo a devolver esses livros e a levar outros”. A partir dessas fichas construiu-se um mundo em Espantapájaros, pois começaram a nos contar quais livros cada um levou durante sua vida. Estudamos as escolhas das crianças e vimos que elas aprendem a se responsabilizar por elas, seja levando sempre o mesmo livro, ou aumentando o número que pediam. Tudo isso é um exercício de cidadania impressionante, e as crianças o defendem e veem muito sentido nele.
Como se faz para seduzir para a leitura professores que não leem?
Lendo para eles e criando ambientes em que os livros operem transformações. Seduzi muitos professores à leitura levando de início meus próprios livros, mostrando como as crianças leem. Penso em culturas em que a palavra escrita sempre foi associada ao poder dos que sabem e às carências dos que não sabem. Disso, resulta algo muito poderoso e potente que chamo de “O espetáculo de um bebê lendo um livro”. É quando um adulto descobre que apesar de não saber ler muito bem, sua voz é essencial para seu filho, que é ele quem lê as melhores histórias para seu bebê. Porque esse bebê quer ouvir essa voz lendo. E quando descobre que também se pode inventar a história, e pode equivocar-se. E quando os professores começam a ver as transformações tão rápidas que ocorrem quando colocam cestas de livros, ou quando criam um espaço para que aconteçam coisas com os livros, começam a ver os vínculos e o quanto as crianças os desfrutam, é aí que tudo começa a ser construído. Obviamente, devem-se formar os professores, mas muitas coisas que proponho estão relacionadas a um ambiente que seja inspirador. E outra coisa que faço muito é ler em voz alta para os professores, a partir da ideia de que os professores são crianças que necessitam que Sherazade lhes conte uma história. Todos necessitam de uma Sherazade particular.