NOTÍCIA
Sem assumir as consequências da liberdade pessoal ou coletiva, continuaremos reféns de uma aceitação impensada da realidade; leia coluna de Gabriel Perissé
Publicado em 15/03/2017
O Brasil, antes de ser Brasil, não podia existir nos livros escolares. Não se chamava Brasil nem era ainda o que se tornou a partir do século 16. De interrogação tropical (para a mente europeia), tornou-se então uma feitoria escravista e mais tarde um proletariado externo a título de possessão estrangeira.
Estou escrevendo em sintonia com Darcy Ribeiro (seu livro O povo brasileiro). Como povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, atravessamos dois, três séculos presos ao atraso e à ignorância. Fomos espoliados e mantidos em situação subalterna. Nossa terra (e nossa água… e nossa alma) uma e outra vez explorada. E a liberdade jamais conquistou espaço entre a imposta ordem e o suposto progresso, palavras cravadas na bandeira nacional.
No século 19, procurando nas raízes um destino, nossos escritores românticos e realistas redescobriram o país. Somos floresta virgem e fascinante, e somos cortiço no espaço urbano. Somos José de Alencar e Aluísio Azevedo. E logo vieram imigrantes de vários pontos do mundo, trazendo idiomas diversos e novos traços físicos e culturais. No século 20, o escritor vienense Stefan Zweig acreditou que éramos “um país do futuro” (reparem no artigo indefinido), e não “o país do futuro”, como se procurou difundir.
E chegamos ao final do milênio, após uma sucessão de ditaduras e de períodos quase democráticos, sem saber responder à crucial pergunta que Darcy Ribeiro se fazia com frequência: “Por que o Brasil ainda não deu certo?”.
O passado não passou
Quem tem mais de 50 anos de idade, meio século de alguma leitura de mundo e de país, sente-se convidado a arriscar um palpite. Ainda não demos certo (ofereço minha opinião) porque continuamos praticando a servidão voluntária de que falava o escritor francês Étienne de La Boétie (século 16). Em seu Discurso sobre esta atitude humilhante, o autor denunciava nossa conivência com a tirania. Aceitamos os tiranos e lhes damos território, alimento e segurança.
O tirano aposta todas as suas fichas em nosso medo de assumir as consequências da liberdade pessoal e/ou coletiva. Seu trunfo e seu triunfo estão em nossa aceitação impensada e comodista. E em nossa leitura insuficiente dos acontecimentos.
O passado da condição subalterna não passou. Repetimos sem refletir a frase disseminada. Ouvimos sem analisar e repetimos sem pestanejar: “manda quem pode, e obedece quem tem juízo”. No entanto, que juízo, que bom-senso terá alguém que obedece automaticamente, e repete o “amém” induzido por palavras manipuladoras?
As palavras de La Boétie vêm igualmente do passado para o presente, num piscar de olhos. Referindo-se à
o escritor enaltecia, por contraste, aqueles que possuem “uma cabeça bem-feita”
[…] e esta lucidez alcançaram graças ao estudo e ao conhecimento. Mesmo que a liberdade viesse a se perder inteiramente e fosse lançada fora do mundo, estes ainda saberiam imaginá-la e senti-la em seu espírito, e até mesmo saboreá-la, pois não suportam o gosto amargo da servidão, por mais disfarçado que esteja.A noção de “cabeça bem-feita” é partilhada por Montaigne, grande amigo de La Boétie. Segundo Montaigne, nossos filhos precisam ter uma cabeça bem-feita, mais do que bem cheia. A cabeça cheia de conhecimentos inúteis não garante lucidez, critério e conduta adequada.
Crise ou projeto?
Voltemos a Darcy Ribeiro, que possuía uma senhora cabeça! E indicava um instrumento de avaliação da realidade presente. Perguntava ele: “Isso é crise ou é projeto?”. Diante de um problema, de uma catástrofe, de uma perplexidade, esta pergunta ajuda a discernir causas e motivações.
Presídios superpovoados, isso é crise ou é projeto? Poucas estações de metrô numa megalópole, isso é crise ou é projeto? Universidades públicas sem verbas, isso é crise ou é projeto? Livrarias indo à falência, isso é crise ou é projeto? A profissão docente desvalorizada, isso é crise ou é projeto?
A liberdade de pensar é ato de resistência. Resistir, não se dobrar nem se sujeitar, é desejar uma existência digna. A cabeça bem-feita pergunta sobre a realidade das coisas, mesmo quando tudo parece óbvio e natural.
No livro Viva a língua brasileira (de 2016), Sérgio Rodrigues usa a cabeça e nos ensina a não embarcar em qualquer interpretação.
Há décadas temos ouvido, lido e até divulgado a ideia de que a palavra “crise” em chinês é composta por dois caracteres, um com o significado de “perigo” e o outro com o sentido de “oportunidade”. Parece que foi o presidente John Kennedy quem começou a distribuir essa falsa moeda linguística, sendo depois imitado por palestrantes e escritores de autoajuda.
Pois bem. Sérgio Rodrigues explica que o chinês weiji (“crise”), conforme esclarecem os estudiosos do mandarim, significa situação de perigo mesmo. Em outras palavras, há um projeto que tenciona fazer-nos crer que “crise” é uma excelente oportunidade! A eterna crise educacional, por exemplo, seria algo que valeria a pena cultivar. Que tal?