NOTÍCIA
Com a aceitação da nota do Enem e anuidades competitivas, universidades portuguesas ganham a atenção – e as matrículas – de uma parcela da população brasileira
Publicado em 05/03/2020
Reconhecimento internacional, preços acessíveis, processo seletivo simples e aulas em português, mas tudo isso do outro lado do oceano Atlântico, no Velho Continente. Com tantos predicados, o ensino superior de Portugal tem atraído um número crescente de estudantes brasileiros. No primeiro semestre de 2019, 13.295 brasileiros estavam inscritos em cursos superiores de Portugal. Em 2005, eles eram apenas 1,9 mil.
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O movimento para facilitar o acesso e, assim, incentivar a matrícula de brasileiros no sistema português começou em 2014, quando o país passou a aceitar a nota do Enem como forma de ingresso. Atualmente, 47 instituições de ensino superior portuguesas têm convênio com o Inep para usar o Enem. Como resultado, mais de 5% dos matriculados em universidades portuguesas hoje são brasileiros.
“Certamente passar a aceitar o Enem ajudou a aumentar o número de brasileiros, porque reduziu a burocracia inerente ao processo de candidatura”, afirma o professor Manuel José Damásio, administrador adjunto da Universidade Lusófona, a maior universidade particular do país, que conta com quase 700 alunos do Brasil.
Para Damásio, o crescimento da presença dos brasileiros se deu de forma tranquila, em um processo que ele considera bem-sucedido. “Os alunos brasileiros são um fator positivo de reforço da diversidade e multiculturalidade do campus da universidade”, afirma. A integração, segundo ele, se dá social e academicamente dentro do esperado. “As taxas de sucesso nos vários ciclos de formação são similares às dos alunos locais”, garante.
Mais do que simplesmente adotar o Enem como porta de entrada, as principais instituições portuguesas têm feito ações para se tornarem conhecidas pelos estudantes de ensino médio do Brasil. A pública Universidade de Lisboa (ULisboa), a maior do país, nem sequer exige o Enem para os candidatos – ele é pedido em apenas alguns cursos de maior concorrência. Tem atualmente 3 mil alunos brasileiros, número que representa um terço de todos os alunos internacionais da instituição.
“Nos últimos anos, a universidade tem feito um esforço adicional para se internacionalizar, nomeadamente tentando atrair mais estudantes para os seus ciclos de estudos, de graduação e de pós-graduação. Os nossos esforços têm incidido sobretudo nos países de Língua Oficial Portuguesa, apesar de nossos estudantes internacionais provirem de 101 países diferentes”, afirma Luis M. A. Ferreira, vice-reitor da Universidade de Lisboa.
A ULisboa organiza missões estratégicas de promoção internacional, faz “Sessões de Esclarecimento” em destinos cruciais como o Brasil, envia representantes a várias feiras acadêmicas internacionais. “A ULisboa abre ainda as suas portas a todos os estudantes internacionais que a queiram visitar, em grupos organizados, ou a título particular, permitindo o agendamento de visitas nas várias escolas e na própria reitoria”, exemplifica Ferreira. O conjunto de esforços tem sido exitoso. “Claramente, o intercâmbio com o Brasil tem se intensificado nos últimos anos.”
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O ensino superior de Portugal, com 298 mil alunos de graduação, é majoritariamente público – o setor concentra 80% das vagas. Diferentemente do Brasil, todas as universidades públicas cobram anuidades. Elas, contudo, têm um valor máximo fixado pelo Ministério da Educação. Para os cidadãos portugueses, neste ano letivo, uma graduação pode custar no máximo 872 euros ao ano (aproximadamente R$ 4 mil). Para os estrangeiros, contudo, essa limitação de valor não se aplica.
Desde 2005 o país aderiu ao chamado Processo de Bolonha, que usa um sistema de créditos padronizado entre vários países da Europa e facilita os intercâmbios pelo continente. Em 2019, o ensino superior passou a ter uma estrutura de três ciclos de estudos: licenciatura, mestrado e doutorado. Todas as licenciaturas duram apenas três anos. Para alguns cursos, como as engenharias, é preciso estudar por 5 anos, mas o aluno sai com o grau de mestre.
A brasileira Beatriz Negromonte, de Caruaru, Ceará, usou sua nota no Enem em 2016 para entrar em Engenharia Biomédica da Universidade de Coimbra. Ela já terminou a licenciatura e agora faz o mestrado. “A gente segue direto de um ciclo para o outro: é o que se chama aqui de mestrado integrado”, explica.
Mais do que obter um mestrado em apenas cinco anos de estudo, o renome da instituição pesou na sua escolha. “Eu nem acreditava que era possível estudar num lugar tão tradicional, com tanta história”, diz ela. Fundada em 1290, a Universidade de Coimbra é uma das mais antigas do mundo ainda em operação. Estudaram nela grandes escritores como Camões e Eça de Queiroz.
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Beatriz conta que seus planos iniciais eram estudar no Canadá – foi aceita em quatro universidades canadenses – e Portugal lhe apareceu como uma oportunidade de última hora. “Nunca tinha pensado em Portugal, até um amigo me dar a dica de usar o Enem. O processo foi muito simples, fiz tudo no próprio site da universidade. Não dá nem para comparar com a complexidade de um processo seletivo canadense”, conta.
Na balança de prós e contras, Portugal lhe pareceu um destino mais vantajoso. “O curso era mais barato que o do Canadá e o clima em Portugal também é melhor – no Canadá as temperaturas chegam a -20 Co. Outra vantagem é que Portugal tem muitos brasileiros, então a gente não se sente sozinho”, enumera sobre as vantagens do país que escolheu.
Um diferencial na estrutura universitária em relação ao Brasil é a possibilidade de alunos estrangeiros cursarem um semestre pré-universitário (SPU). “Para jovens cujo potencial é evidente, mas cuja preparação exige um ajuste, a Universidade oferece um SPU”, conta João Amaro de Matos, vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa. Na instituição cerca de 50% dos participantes do semestre pré-universitário são brasileiros.
O SPU é uma porta de entrada que existe também em outros países da União Europeia. O preparatório ajuda os jovens na integração no sistema de ensino europeu, nivelando os conhecimentos técnicos e oferecendo-lhes competências linguísticas em inglês, quando necessário. O sistema permite ainda que os jovens frequentem diversas cadeiras, de áreas distintas, de modo a facilitar a escolha do curso na sequência de um SPU bem-sucedido.
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Não é somente nos campi universitários lusitanos que a quantidade de brasileiros tem aumentado recentemente. Em 2018, a comunidade de “brazucas” na terrinha chegou a 100 mil, segundo dados oficiais. Os imigrantes irregulares não entram nessa conta.
A imigração é uma necessidade do país para driblar o envelhecimento da população. Portugal tem visto o número de habitantes cair nos últimos anos e precisa de imigrantes para manter a economia. De 2017 para 2018, mesmo com uma entrada recorde de estrangeiros, perdeu 14 mil habitantes. A população jovem (pessoas com menos de 15 anos) baixou em 16.330 entre 2018 e 2017, ficando em 1.407.566. No mesmo período, a população com idade igual ou superior a 65 anos aumentou em mais de 30 mil, para 2.244.225 pessoas.
Assim como acende um sinal de alerta para a economia, a configuração da demografia portuguesa faz com que a atração de estrangeiros seja uma necessidade cada vez mais urgente para as universidades. Desde 2007 o governo registra queda no número de alunos matriculados no ensino básico. O fenômeno de decréscimo de estudantes deve chegar ao ensino superior neste ano, com menos alunos portugueses terminando o estudo secundário e, assim, menos jovens aptos para seguir para a próxima etapa.
Oficialmente, a possibilidade principal a ser trabalhada é a expansão do acesso ao ensino superior, segundo explica um relatório do Ministério da Educação. Na prática, o país se prepara para receber ainda mais estrangeiros. Até ano passado, o Estatuto do Estudante Internacional permitia às faculdades públicas destinar no máximo 20% de vagas a estudantes de fora. O ministério atualizou o valor para 25% neste ano letivo.
A abertura para os estudantes internacionais é vista tanto numa perspectiva de diversidade cultural, como de alargar a capacidade de recrutamento de alunos. “Num mercado pequeno como o português, a única forma de crescer enquanto universidade é abrir a instituição ao mercado internacional”, afirma João Amaro de Matos, vice-reitor da Universidade Nova de Lisboa.
“Recrutar num espaço mais abrangente permite atrair melhores talentos. Atraindo os melhores talentos, temos melhores condições para os colocar num mercado profissional mais diversificado, não só geograficamente, mas também em termos de competências. É este sucesso na capacidade de colocação internacional que torna a universidade atrativa para os melhores alunos estrangeiros, num círculo virtuoso”, explica Matos.
Ter estudantes internacionais traz ainda vantagens financeiras às instituições públicas. Com o valor cobrado dos portugueses controlado centralmente pelo governo, a matrícula dos estrangeiros traz verbas extras. Alunos internacionais pagam em torno de 3 vezes o valor oficial, mas em certos cursos chegam a desembolsar até 5 vezes o montante.
Nas faculdades privadas, os valores anuais dos cursos de graduação variam de 3 mil a 4 mil euros (R$ 14 mil a R$ 19 mil), independentemente da nacionalidade do aluno.
Nem só as universidades mais tradicionais ou as das grandes cidades do país, Lisboa e Porto, têm conseguido atrair um contingente expressivo de brasileiros. Mesmo localizada no interior do país, a “jovem” Universidade de Beira Interior (UBI), com 40 anos de existência, já chegou aos 20% de alunos internacionais permitidos. E pretende aumentar a taxa até novo limite. “Neste momento temos cerca de 1,2 mil estudantes brasileiros, mas esperamos continuar a crescer, dentro das limitações impostas pela Lei e pelas condições de ensino”, afirma o vice-reitor para o Ensino Internacionalização e Saídas Profissionais, João Canavilhas. A UBI fica em Covilhã, cidade de 35 mil moradores a 280 km da capital.
A UBI tem feito um forte investimento na captação de estudantes internacionais e, nesse aspecto, o Brasil é um dos maiores focos de atenção. “A língua comum, a qualidade do nosso ensino e as condições de vida na Covilhã – hospitalidade, segurança e custo de vida mais acessível do que nas grandes cidades, por exemplo – oferecem o contexto ideal para que os estudantes brasileiros façam conosco a sua graduação, mestrado ou doutorado”, afirma Canavilhas.
A instituição organizou fases de candidatura ajustadas ao calendário do Brasil e criou um site específico dirigido a candidatos do país. “No site podem ficar a conhecer tudo sobre a UBI: a cidade, alojamento, cantinas, serviços de apoio e muitos outros aspetos que os esperam ao chegar a Portugal”, explica. A universidade oferece ainda uma redução da anuidade em relação aos demais estudantes internacionais. “Eles podem ainda ter acesso a uma das bolsas de incentivo, disponíveis este ano em 11 dos nossos cursos”, diz o vice-reitor.
Os jovens sabem que a troca cultural pode se tornar um grande diferencial para ter sucesso em suas carreiras, mesmo que sejam em instituições menos reconhecidas, acredita Thiago Chaer, CEO da aceleradora de startups de educação Future Education, que também atua no Brasil e em Portugal. “Uma graduação em Portugal é interessante para o aluno porque ele vai viver uma multiculturalidade, mas as aulas vão ser na mesma língua que ele já fala”, diz ele. “Mas, claro, essas vantagens vão ser maiores ou menores a depender do curso, da área de atuação.”
Segundo Chaer, as IES portuguesas são concorrentes diretas das brasileiras. Contudo, a abertura das universidades lusitanas para os brasileiros pode representar também grandes oportunidades. “As instituições do Brasil poderiam firmar convênios de intercâmbio para seus alunos passarem um tempo em Portugal. Ou mesmo oferecer a opção de uma dupla titulação. O interesse dos portugueses deve ser visto como uma oportunidade de internacionalização”, afirma.
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