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Faca de dois gumes

Desprezo pelo folclore brasileiro, em geral tratado como efeméride pela escola, prejudica a compreensão da história social do país

Publicado em 10/09/2011

por Vanessa Sayuri Nakasato




Dançar e cantar músicas folclóricas entrou na moda entre jovens de classe média. O que para eles era brega e bizarro, há duas décadas, é considerado hoje "legal" e moderno. Aprendeu-se a valorizar a cultura popular? Pouco provável. Segundo especialistas, ela está apenas sendo consumida, a exemplo de qualquer outro produto lançado pela indústria de entretenimento.

"Os jovens não têm se aproximado de manifestações brasileiras porque eles realmente as valorizam, mas porque se tornaram uma espécie de diversão", lamenta o etnomusicólogo Paulo Dias, coordenador da organização não-governamental (ONG) Cachuera!, que trabalha pela preservação da diversidade musical do país.

O movimento antiglobalização, iniciado na década de 90, gerou em diversos países a criação de grupos preocupados em preservar costumes e tradições locais. Com medo de que suas raízes fossem apagadas com a universalização, folcloristas e pesquisadores fundaram ONGs e produziram materiais para resguardar a cultura popular.

A indústria de entretenimento, por sua vez, não perdeu a oportunidade. Criou festas, festivais, cursos, CDs e, em pouco tempo, transformou a cultura popular em boa mercadoria. No caso do Brasil, sua imensa diversidade permite explorar atividades para todos os gostos.

Ao contrário do que se poderia imaginar, os defensores da cultura popular não estão contentes com o fato. Toda manifestação de cultura popular tem seu tempo, motivo e próprio espaço, lembra Paulo Dias. Há um contexto social e histórico para que ela exista. Nos eventos de mercado, quase ninguém se preocupa com isso.
"Quando uma manifestação que costuma durar 12 horas seguidas é colocada em um palco e reduzida para uma hora, ela perde todo o seu sentido", ressalta. Em outras palavras, pessoas cantam, dançam e participam de rituais, mas, em geral, não sabem direito o que estão fazendo.




Elemento unificador

– O desprezo pela cultura popular tem origem em fenômeno antigo, o da "autodepredação". Para Alberto Ikeda, professor de etnomusicologia e cultura popular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), a falha está na educação básica, que ensina a história e a cultura estrangeiras, mas "deixa de escanteio a brasileira". "Mostra-se sempre que o de fora é melhor, sendo que vivemos num país exuberante e encantador", analisa.





Silvana Salerno: lendas e fábulas "nasceram para explicar algum fenômeno, medo ou moral de um povo"


A professora Maria Cecília Cortez Christiano de Souza, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a valorização das raízes poderia elevar o sentimento de dignidade e consideração por si próprio do brasileiro. O que faz com que essas raízes estejam vivas é a idéia de que o elemento unificador da população brasileira é uma longa trajetória e uma memória em comum. História por muitos ignorada, mas que construiu identidade forte, baseada em longo aprendizado.

A criança que tem contato com a cultura de seu país o enxerga com outro olhar. Ela percebe que a história de sua nação não é a oficial, contada pelos livros, mas a social, feita de indivíduos anônimos. Cidadãos que desenvolveram valores universais, como a tolerância, o respeito às diferenças, a solidariedade, a democracia, a alegria, a generosidade e a igualdade.

As lendas e fábulas, consideradas meras alegorias pelos adultos, também ajudam a criança a entender a alma de seu país. "Elas nasceram para explicar algum fenômeno, medo ou moral de um povo", diz Silvana Salerno, autora de Viagem pelo Brasil em 52 Histórias (Cia. das Letrinhas, 160 págs., R$ 38). Os personagens Cuca e Mula sem Cabeça, por exemplo, são tenebrosos e demonstram uma sociedade repressora. "Isso nos faz pensar onde estamos inseridos", diz.

O Decreto 48.310 de 1967 determina que as escolas comemorem o folclore no mês de agosto. Entretanto, essa legislação é considerada insuficiente por folcloristas e cientistas sociais. Grande parte das escolas brasileiras estuda o tema uma vez ao ano e é comum que essa comemoração se restrinja a um trabalho sobre o Curupira ou o Saci Pererê. Não se abordam mitos, lendas e tradições do ponto de vista histórico, sociológico, psicológico e econômico.

"Estabelecer um dia de homenagem não significa nada quando nem o professor nem o aluno sabem bem o que estão homenageando", critica Maria Cecília. Além disso, cultura popular não é efeméride. Ela está presente todos os dias nas ruas, nas comunidades periféricas, indígenas e afro-brasileiras.

"A cultura popular deveria ser trabalhada no dia-a-dia. Ela faz parte da identidade brasileira e os professores poderiam explorá-la em várias disciplinas", sugere Dias. "Assim como a criança precisa aprender a ouvir Bach, Chopin e Beethoven, ela tem de aprender a ouvir jombo", acrescenta.




Inspiração e apropriação

– O folclore e a cultura popular costumam ser vistos como elemento exótico, coisa de museu. Quando ONGs e pesquisadores falam da importância de se preservar as raízes do Brasil, o verbo resgatar é sempre mencionado."Utiliza-se muito a palavra resgate, como se tirassem aquilo do limbo e trouxessem de volta para a sociedade", zomba Dias. As tradições, no entanto, continuam vivas. Elas só não são visíveis na grande sociedade e nos meios de comunicação de massa. Não se trata de resgatar, mas de dar visibilidade.

O movimento modernista, na década de 20, mostrou interesse de se apropriar da cultura popular como tema de suas obras de arte. As idéias de muitos artistas e intelectuais se alimentaram das culturas regionais. O objetivo não era usá-las apenas como fonte de inspiração, mas ressaltá-las e divulgá-las ao país. O escritor e folclorista Mário de Andrade e o compositor Villa-Lobos foram alguns desses artistas. "Villa-Lobos é citado, a todo momento, como um grande nome da música brasileira. No entanto, ninguém estuda seu objeto de inspiração", comenta Ikeda.

Hoje, há quem defenda modificações na legislação e o acréscimo de disciplinas voltadas à cultura popular na grade escolar, preocupações manifestadas por folcloristas desde a década de 40. "Fazer uma lei é uma coisa. Aplicar é outra", alfineta Paulo Dias. Ele enfatiza que a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira no ensino formal, até hoje não saiu do papel. Ela foi sancionada há mais de dez anos.


O número de professores com formação para ministrar aulas de cultura popular e história afro-brasileira ainda é pequeno, mesmo no meio acadêmico. Algumas universidades criaram recentemente cursos para capacitar docentes sobre a história da África. No entanto, disciplinas sobre cultura popular afro-brasileira ainda são raras.

O Museu de Folclore Rossini Tavares de Lima, localizado em São Paulo, promove, todos os anos, um curso de dez meses. Em 2006, como nos anos anteriores, vagas foram reservadas para professores das redes municipal e estadual. Nenhuma foi preenchida. "Isso vem de encontro com o descaso oficial à nossa educação", diz Hélio Moreira da Silva, diretor do museu e também da Associação Brasileira de Folclore. "Se as nossas culturas subsistem em toda plenitude, dê graças ao povo."

 




Hélio Moreira da Silva: se as manifestações culturais sobrevivem, "dê graças ao povo"


As Oficinas de Arte e Artesanato no Folclore e na Cultura Popular, criadas em 1960, abordam 35 segmentos. Por meio de aulas práticas, os participantes aprendem danças e músicas folclóricas, utilização e produção de instrumentos musicais, construção e uso de "cabeções" ou "gigantões", bonecos e bonequeiros, todos feitos de materiais recicláveis. Os alunos ainda aprendem teatro, aplicação de espetáculos circenses na pedagogia, e a produzir história, roteiro, cenário e bonecos de mamulengo. O curso custa R$ 150. Os professores da rede pública têm desconto. Mesmo assim, poucos educadores se inscrevem.

O Museu do Folclore já ofereceu diversas vezes suas oficinas para parcerias com secretarias municipais e estaduais de diversas regiões. "Infelizmente, ninguém deu bola. Nem os ministérios da Educação e da Cultura mostraram o mínimo interesse."
A cultura popular, em boa medida, é oral. A cultura da oralidade é confundida com a do analfabetismo. Isso explica, em parte, por que ela é tão marginalizada. O folclore e a cultura popular utilizam-se de outros suportes, que não a escrita, para se perpetuar: a fala, o corpo, o gesto, o movimento. Linguagens verbal e não-verbal. "É por isso que nossos costumes não cabem em uma sala de aula. O compasso da escola é a escrita. Falta a percepção de que as letras não são a única forma de gerar e trazer conhecimento", afirma o professor Alberto Ikeda.

"O ideal seria criar meios para que os mestres populares pudessem passar seu conhecimento, inclusive em ambiente escolar", acredita Paulo Dias.


TV, a grande educadora – Em Cuba, há pai-de-santo que dá aula de dança dos orixás na universidade. As escolas ensinam as crianças a tocar e a dançar os principais ritmos musicais do país. Tudo o que diz respeito aos costumes cubanos faz parte do currículo escolar. "Em Cuba, os cidadãos têm plena consciência do que acontece com eles, ao contrário dos brasileiros", afirma a antropóloga Celeste Mira, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que estuda a atual febre pelas manifestações populares.

As dimensões do Brasil não seriam desculpa ou explicação para que o brasileiro conheça pouco de seu país. Embora seja compreensível que o Rio Grande do Sul não se reconheça no Rio Grande do Norte, é injusto que o Sul desconheça as tradições do Norte e vice-versa. Se a escola não dá conta de ensinar cultura brasileira, especialistas afirmam que caberia à televisão fazer isso. "A TV é a grande educadora dos brasileiros. Por conta disso, o mínimo que ela pode fazer é levar o Brasil à população. Não só como espetáculo, mas como história", propõe Celeste.

Outra forma de ensinar raízes seria fazer com que se vivenciem tradições. Segundo o professor Alberto Ikeda, a cultura popular tem de ser herança de pai para filho. "É preciso que a criança pratique o legado da comunidade onde vive. Não adianta só entender", enfatiza.




Celeste Mira: a TV é a grande educadora dos brasileiros


De acordo com Ikeda, o folclore é trabalhado de forma inadequada nas escolas. As manifestações e os personagens são descontextualizados, e a comemoração, em agosto, não passa de evento artificial, superficial e mentiroso. Professores pedem para a criança fazer uma colagem, cantar uma música e, no mês seguinte, ela já esqueceu tudo. "Esses pequenos cidadãos precisam integrar o saber do avô, da mãe e da tia, e não apenas cumprir sua obrigação escolar", diz.

O Complexo Educacional Guararapes, de Jaboatão dos Guararapes (PE), já aplica esse raciocínio. A escola trabalha a cultura popular durante o ano todo e estimula os seus alunos a vivenciarem-na.

Os trabalhos acontecem a partir de uma pesquisa, feita pelas crianças, sobre o significado da expressão cultura popular. Após compreendê-la, elas produzem uma lista com as manifestações mais relevantes de seu estado. É aí que começa a diversão.
Cada educador procura desenvolver atividades diversificadas em sala de aula. Vale tudo: produção escrita, artes plásticas, danças, degustação de comidas típicas e até gincanas.

As máscaras e os estandartes confeccionados pelos estudantes na escola são apresentados em um desfile dos blocos da Saudade, Galo da Madrugada e Movimento Mangue, todos compostos por crianças.

Todos os anos, a prefeitura de Recife escolhe personagens para homenagear nas festas carnavalescas. O Complexo Educacional Guararapes recebe os nomes com antecedência e faz uma pesquisa sobre essas pessoas. O intuito é que as crianças conheçam aqueles que contribuíram e contribuem para o enriquecimento cultural de Pernambuco. Em 2006, foram homenageados o cantor de frevo Claudionor Germano e o romancista Ariano Suassuna.

As festas juninas não ficam de fora. Tradicionais no calendário nordestino, elas também são estudadas pelos alunos. "Somente conhecendo e defendendo nossos próprios valores poderemos ser respeitados como nação soberana", acredita Ana Carolina Santos, coordenadora pedagógica do ensino fundamental.

Autor

Vanessa Sayuri Nakasato


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