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Entrevistas

Ex-ministro da Educação critica: Brasil é um país apaixonado pela abstração

Em entrevista exclusiva, Renato Janine Ribeiro fala sobre pandemia e angústias. Provoca também que a preocupação das escolas deveria ser a de formar cabeças bem feitas, e não cabeças bem cheias

Publicado em 28/01/2021

por Ensino Superior

renato-janine-ribeiro Renato Janine Ribeiro: Mesmo quando se troca a ideia de conteúdos por competências, não

Para o filósofo e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, o tempo de pandemia trouxe angústias, incerteza e inconformismo com a forma como governo e sociedade se portam na crise. Mas o isolamento social também estimulou uma profunda atividade intelectual: o pensador já havia terminado em 2020 um romance histórico, uma peça de teatro, a organização de uma coletânea de artigos publicados e finalizava uma nova obra sobre Maquiavel e a democracia, nos últimos dias do ano.

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Interrompendo por alguns momentos esse trabalho, Renato Janine Ribeiro concedeu entrevista à plataforma Ensino Superior, em que discorreu sobre diversos temas ligados à educação, a partir de sua vivência como ex-ministro, como pesquisador universitário e como professor.

Segundo ele, seja na educação básica, seja no ensino superior, a preocupação das escolas deveria ser a de formar cabeças bem feitas, e não cabeças bem cheias, como já bem definiu o escritor e médico francês François Rabelais (1494-1553). Mas, por aqui, as discussões andam bem menos inspiradoras. “O debate público sobre temas importantes como a volta às aulas durante a pandemia continua muito pobre”, desabafa.

Renato Janine Ribeiro Educação
Renato Janine Ribeiro: Mesmo quando se troca a ideia de conteúdos por competências, não muda tanto, pois educar é mais do que instruir

Como o senhor vê o cenário da educação brasileira hoje?

Eu estou muito preocupado. Vejo pessoas como consultores de institutos privados e jornalistas da área falando sobre a volta às aulas, mas ninguém discutindo de fato se as escolas estão sendo preparadas para isso. Não se pode voltar às aulas sem ampliar, por exemplo, os serviços de limpeza. Vai haver essa contratação? Os banheiros serão reformados? Ah, sim, as crianças precisam voltar, sim, mas vai haver condições de garantir a saúde? As classes estarão completas? Não. Mas então como vai ser?

O próprio professor vai filmar sua aula e se posicionar diante da câmera? Vai ficar parado no mesmo lugar? E os 80% dos alunos que estão em casa, vão ver um vazio, quando ele se movimentar? E os tempos de aula, por exemplo? Como serão reorganizados os horários, para que os alunos não se cruzem nos intervalos? Estamos assinalando para a sociedade os cuidados necessários ou vamos deixar ao deus-dará? São muitas as questões práticas, mas que têm sentido filosófico profundo: o respeito à vida. Fico pasmo em ver como nada disso é discutido ou fica em um nível ruim. O Brasil é um país apaixonado pela abstração.

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Vamos partir desse princípio: ficamos presos às abstrações e deixamos de lado questões práticas. Isso é da educação ou da cultura brasileira como um todo?

Acho que é da cultura brasileira, há mesmo um elemento abstrato. As pessoas ficam falando sobre a falta que faz a frequência à escola e a insuficiência da educação remota para as escolas públicas sobretudo para as crianças de escola pública, que mal tiveram aulas. Mas não vejo discussão sobre soluções. Por exemplo, desde que começou a pandemia eu insisti para que se usasse os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) para instalar banda larga nas comunidades mais pobres. Finalmente, foi votada uma lei – que, obviamente, o presidente vetou. Mas apenas eu e o deputado federal Idelvan Alencar (PDT-CE), ex-presidente do FNDE, na minha gestão, colocamos essa questão. Isso vale também para outros aspectos da educação, inclusive a que se refere à reforma do ensino médio.

A quais pontos da reforma do ensino médio o senhor se refere?

Quando se discute a reforma do EM, há uma confusão grande. A reforma caminhou para a oferta de duas famílias de matérias. Entre as opções, uma delas enfatiza a matemática. Mas o que quer dizer isso? Seis aulas por semana? Não tem professor que consiga e não tem aluno que aguente. A reforma traz uma distorção porque as matérias de humanas, se bem ensinadas, preparam para a vida, ao tratar de ética, de valores, formando a pessoa. Nessa discussão do ensino médio se confunde o que é formação para uma profissão, onde as ciências exatas e naturais funcionam bem, e aquilo que é formação para a vida, em que o papel essencial seria da filosofia, da psicologia (inclusive), da sociologia, da literatura, de outras ciências humanas.

Hoje a escola discute com alunos de 14, 15 anos sobre como prepará-las para fazer um ensino superior e, depois, por vias específicas, para o trabalho. Mas a pessoa que sai do ensino médio já pode assinar contratos. Terá aprendido alguma coisa sobre contratos? Sobre a vida? Mesmo quando se troca a ideia de conteúdos por competências, não muda tanto, pois educar é mais do que instruir. Quando alguém propõe tirar do ensino médio a filosofia, nem cogitar colocar psicologia, as pessoas não entendem o alcance do que está sendo feito.

Eu gosto da etimologia da palavra educação: ex ducere é sair de dentro para fora. É se abrir para o mundo. Educar é mais complexo do que está colocado.

Estamos caminhando para uma discussão instrumental, que prepara para o mercado, e deixando para trás visão mais ampla e humanista de educação?

Depende… tem lugares em que há preocupação significativa com humanidades, em fazer da educação algo prazeroso. Essa foi uma das ações das quais fiz questão no MEC: criei uma assessoria especial para a inovação e a criatividade na educação. Foram repertoriadas cerca de 200 iniciativas. Claro que o atual governo logo tirou da página do MEC essas escolas criativas. Vejo as crianças felizes em aprender coisas, mas, de repente, esse prazer diminui, a escola se torna chata. Isso acontece em algum momento dos anos iniciais do ensino fundamental. Quando as pesquisas mostram que poucos alunos querem ser professores, ou seja, que um adolescente que não quer seguir os passos daquele com quem estão 4 horas por dia, é sinal de que a escola não os inspira. O professor obviamente sente o mesmo. Existe um desânimo em relação à profissão, o que é muito sério.

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A solução é conhecida: melhor salário e a qualidade da formação. Lembro um tempo em que a casa de uma professora não ficava tão longe de casa do juiz e das outras figuras importantes da cidade. Hoje isso decaiu muito. Cria-se um círculo vicioso, e para romper é preciso melhorar. Claro, é difícil. Sindicatos querem melhoria salarial, mas não necessariamente avaliação de desempenho. Outros fantasiam dizendo que é possível melhorar a educação sem melhorar o salário do professor ou, até mesmo, sem o professor…

E o ensino superior, é também um espaço em que o pensamento filosófico deveria estar mais presente?

Meu ponto de partida para a reflexão sobre o ensino superior vem de quando escrevi a proposta do curso de humanidades para a USP em 2000, e publiquei o meu livro A universidade e a vida atual: Fellini não via filmes (Edusp). As pessoas acreditam que a formação universitária dá um diploma e, se possível, uma reserva de mercado. Você cria uma habilitação e associa isso a um espaço a ser ocupado pela pessoa. Por exemplo, profissões como biólogo, biomédico, bioquímico vão ser de profissionais com habilitações e direitos diferentes. O risco disso é associar o curso universitário a uma regulação do Ministério do Trabalho. Algumas profissões podem mesmo deixar de existir, ser subsumidas por outras, depende do avanço tecnológico.

Penso que o ensino superior tem de ser sobretudo formação, e há um conflito entre essa ideia e o conceito de treinamento. Treinar é técnico; na formação, mexemos com o sujeito, mudando o jeito de ele ser.

Penso em um exemplo simples: aprendi a usar o programa Excel apenas o suficiente para prestações de contas, e para mim vai ser apenas uma informação a mais. Mas se isso revolucionar a maneira de se lidar com as coisas, se eu for empresário, acostumado a fazer contas no papel, e isso mudar as condições de existência da empresa, manejo de estoque, venda, muda também meu jeito de ser. No primeiro caso, mudamos o objeto, no segundo o sujeito. Quando mudamos o sujeito, temos formação. Quando mudamos o objeto, temos informação, treinamento, especialização. Educação é isso: o ensino superior tem de promover um conhecimento que capacite os indivíduos a serem mais do que eles são.

E estamos melhorando no ensino superior?

Melhorar o ensino superior, antes de mais nada, significa buscar mais qualidade, e avançamos muito nisso. Com as avaliações, muitas faculdades privadas acharam que valeria a pena melhorar, dar cursos bons, mudaram de foco, foi muito positivo. Mas não está resolvido. Mudar o modelo é fazer do ensino superior um espaço de educação e formação. Tem de ser educação superior e não ensino. Uma pessoa de 20 anos está indo atrás de diploma, provavelmente o único diploma de graduação que ela vai ter na vida. Tem pela frente mais 60 anos de atividade. Não faz muito sentido imaginar que a pessoa vai passar o resto da vida fazendo só o que ela aprendeu na faculdade. Podem surgir novas oportunidades, novos focos… Não é preciso ficar colecionando graduações. É preciso preparar as pessoas para uma profissão levando em conta que ela possa se tornar obsoleta.

E o que é ter melhor formação?

Isso deveria valer para todas, inclusive as que não têm pesquisa, pois em nenhum lugar do mundo todas as instituições são de pesquisa. Em toda e qualquer educação superior é preciso assegurar que o aluno saia melhor do que entrou. Não é só saber mais coisas, isso é óbvio. Mas saber o que é a formação adequada para alguém. Vamos usar o exemplo das engenharias. Há pontes a serem construídas entre a engenharia e as humanas. Na formação dos engenheiros, muitas vezes se ignora o impacto social do que sua ação produz. Quando aumenta produtividade, desemprega-se gente. Quem está ganhando e quem está pagando a conta? Socializa-se o custo e o prejuízo e privatiza-se o lucro. O engenheiro não pode ignorar isso.

Ao mesmo tempo, a engenharia tem algo fabuloso: a essência da engenharia é calcular riscos. Por isso, os bancos contratam engenheiros, e ele sai do setor produtivo e vai para o setor especulativo. É um conhecimento que vale a pena para todo e qualquer profissional, de qualquer área. Nem todos precisam aprender Weber, Marx, Durkheim, mas é importante calcular riscos. É muito importante entender a essência de cada profissão – ou seja, a eidética, a olhada, a pegada de cada profissão, a maneira como cada profissão constitui seu objeto. Essas diferentes perspectivas são muito importantes, pois o conhecimento torna-se cada vez mais interdisciplinar; preciso olhar objetos de diferentes focos.

Voltando à questão da tecnologia, como vê o ensino a distância?

Eu defendo o ensino remoto, mas o presencial é muito importante. É muito importante existir a turma, ter contato com os colegas, ter contato com adultos, pessoas mais velhas, modelos em que nos inspiramos e também dos quais vamos nos distinguir. Tudo isso perde-se se for totalmente substituído pela tecnologia, como no home office há uma perda significativa. Os valores humanistas estão sendo desconsiderados. No ensino superior, é preciso levar em conta a idade do aluno e o tipo do conhecimento. Uma especialização pode ser muito boa a distância, só acho que abrir mão muito cedo do contato humano é complicado.

Na hipótese do híbrido, é diferente. Sou a favor desse tipo de educação, minha única questão é: ter qualidade. Em algumas áreas, fica mais difícil, como saúde, mas mesmo em engenharia muita coisa se faria a distância. Tem, claro, o problema dos laboratórios, mas dá para se pensar no híbrido. Até porque, a rigor, não existe educação puramente presencial, a partir do momento em que o aluno tem coisas para fazer em casa. Qual a diferença entre ler um livro em casa ou assistir a um vídeo? Puramente presencial seria só a aula do professor e ninguém quer isso. Sou a favor do elemento distancial, como dizem os franceses. A educação precisa buscar aquilo que o escritor François Rabelais disse: a cabeça mais bem feita, que é melhor do que a cabeça bem cheia – e tenho receio de que isso não esteja claro para as pessoas. Conseguindo isso, beleza.

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