Novas diretrizes acoplam a docência de séries iniciais e o preparo para cargos administrativos ao currículo do curso de pedagogia e prevêem assim o desaparecimento dos cursos normais superiores
Publicado em 10/09/2011
Em 2005, o coordenador do curso de pedagogia das Faculdades Integradas de Botucatu passou nas classes explicando que o Ministério da Educação (MEC) estava prestes a aprovar novas diretrizes para o curso. Ana Carolina Vilas Boas ouviu as explicações, mas não entendeu bem o que aquilo significava. Aluna do primeiro ano, Ana resolveu reunir os colegas em torno de um movimento que pedia à direção da faculdade ajuda para obter mais esclarecimentos sobre o que seria do futuro profissional deles depois do currículo aprovado.
Com alunos de pedagogia e normal superior, a faculdade organizou leituras das novas diretrizes e discussões em grupo, para que os alunos pudessem entender as mudanças e participar da construção do novo currículo. Em maio de 2006, a faculdade avisou aos alunos que o MEC acabara de publicar a resolução número 1, que aprovava as novas diretrizes, cuja implantação nas instituições de ensino superior deve ser concluída até maio deste ano. "No começo, fiquei com medo de sermos prejudicados pelo novo currículo. Ainda bem que estudamos a fundo o tema, porque agora acho que a formação ficou mais completa. Estamos muito satisfeitos", diz Ana Carolina.
Se Ana está convicta de que as novas diretrizes são positivas, pelo Brasil afora, os milhares de alunos de pedagogia e do normal superior, que também se viram diretamente atingidos pelas novidades, estão cheios de dúvidas – e boa parte não sabe sequer do que se trata. Uma busca pelas comunidades temáticas do site de relacionamentos Orkut confirma esta tese. São dezenas de grupos sobre pedagogia e curso normal superior, todos eles com algum espaço em que as angústias sobre as novas diretrizes ficam patentes.
Ericah Piva é uma das estudantes que expôs na internet suas inquietações sobre o tema e pediu aos colegas informações sobre o futuro das carreiras. Em entrevista, Ericah se mostra ainda confusa. "Ouvi dizer que as matérias como filosofia, sociologia e história da educação serão eliminadas e que o gestor só será formado em nível de pós-graduação", diz a estudante da Faculdade Campos Salles, em São Paulo, que não teve acesso às diretrizes. As mudanças levantadas por Ericah não estão colocadas desta forma no novo documento, mas constituem algumas das boatarias geradas pelo novo currículo. Apesar dos temores, Ericah ouviu dizer que alunos do novo currículo teriam assegurado o direito de atuar em mais áreas da educação, já que o currículo seria mais amplo – o que, de fato, corresponde à verdade. Isso a vem fazendo cogitar a possibilidade de trancar a faculdade por um ano. "Acho que vou esperar o novo currículo entrar em vigor para fazer o último ano em 2008 e ter direito a dar aulas na educação infantil", avalia Ericah.
Entre as principais mudanças que o novo currículo traz, estão no cerne das discussões a formação em licenciatura em vez de bacharelado, a incorporação da docência para séries iniciais, a ampliação da carga horária do curso e o esvaziamento do Curso Normal Superior. As novidades surgiram não por acaso, mas após anos de debates envolvendo todo o setor acadêmico, instituições de ensino superior, profissionais da educação e até alunos de pedagogia que discutiram sobre o formato curricular do curso. Muitos especialistas dizem que as novidades são bem-vindas porque viriam "para corrigir algumas falhas da LDB", como crê Ana Cristina Canettieri, consultora em educação da Cadec Consultoria.
A polêmica sobre o tema está em pauta há décadas, mas ganhou mais fôlego desde a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, cujo artigo 62 dizia que a formação docente para o ensino básico (de zero a dez anos) deveria ser feita em nível superior, por meio dos Institutos Superiores de Educação, no Curso Normal Superior. A partir daí, o cenário da formação docente virou de cabeça para baixo.
Histórico das mudanças
Até anos atrás, o professor das séries iniciais era formado no curso normal, no ensino médio e não superior. O Normal acabou e, em 1996, para garantir que estes docentes tivessem uma graduação específica para formá-los, a LDB criou o curso normal superior.
Desta forma, a lei estabelecia que não seria a pedagogia, mas sim o normal superior, a formar professores das séries iniciais. Isto seria feito por meio dos Institutos Superiores de Educação, que deveriam ser criados por todas as instituições de ensino superior que desejassem formar profissionais para esta função. O decreto que regulamentava essa medida como sendo obrigatória foi publicado em 1999 e gerou embates por cerca de um ano.
As universidades e centros universitários, que tinham autonomia para gerir seus cursos, não aceitavam criar o instituto. Em agosto de 2000, depois de muita pressão, foi publicado outro decreto, substituindo o termo "exclusivamente" por "preferencialmente" – o que permitia que a formação de professores de séries iniciais não precisaria ser feita unicamente nos institutos. As instituições com autonomia criaram habilitações em pedagogia para formar professores para as séries iniciais e, assim, não tiveram que criar outro curso para atender a esta demanda.
Outras 1.700 instituições sem autonomia, as faculdades, deveriam investir nos institutos e no Normal Superior se quisessem formar professores de séries iniciais. Já a pedagogia ficou direcionada não àqueles que queriam ser professores das séries iniciais (infantil e 1ª à 4ª), mas sim para quem queria dar aulas de 5a a 8a série, ser um teórico da educação ou assumir um cargo de gestão (administrador, inspetor, supervisor, diretor ou orientador pedagógico). "O curso de pedagogia ficou associado a uma profissão não docente. Quando a sociedade percebeu que a pedagogia não formava mais professores do ensino básico, se assustou", diz Ana Cristina.
Enquanto as escolas se adaptavam à legislação, também debatiam, nos fóruns e seminários, sobre as alterações curriculares desejáveis para a pedagogia. A mudança veio em 5 de dezembro de 2005, com as novas diretrizes, ainda em caráter extra-oficial. "A partir desse momento, as instituições sem autonomia teriam novamente que adequar sua estrutura administrativa e pedagógica. Isso gera um prejuízo grande para as faculdades", diz Ana Cristina.
O vai-e-vem de legislações faz a escola investir em novos professores, em estrutura física, em equipamentos, em divulgação das novidades e ter, dessa forma, gastos significativos. Nas Faculdades Integradas de Botucatu, o investimento em torno do Instituto Superior de Educação e do normal superior foi de cerca de R$ 300 mil. Hoje o Instituto ainda existe, mas perdeu a função inicial, já que o normal superior não é mais oferecido na instituição. "São recursos que não voltam mesmo e a instituição perde em estabilidade", diz Cecília de Anderline, diretora da mantenedora da faculdade.
Pontos centrais
Acrescentar a formação de professores das séries iniciais no novo curso amplia o preparo do docente, mas também torna a sua formação mais generalista. Isso porque as novas diretrizes concentram toda a atuação do educador, seja de docente, de gestor escolar, de educador para atuar em espaços não-escolares (empresas, ongs ou outras entidades), teórico da educação ou outras aplicações. As entidades que há anos vêm propondo mudanças comemoram. "A LDB havia criado uma cisão na área. Os antigos institutos, que são espaços de menor exigência do ponto de vista acadêmico, eram compostos por menos docentes com tempo integral ou titulares. Formar um pedagogo para diversas funções é uma luta histórica", diz Helena Lopes de Freitas, presidente da Associação Nacional de Formação de Professores (Anfop).
Com essa medida, o curso normal superior passa a não fazer mais sentido, uma vez que terá que se adaptar às exigências curriculares do curso de pedagogia. Não houve nenhum decreto que determinasse o fim do normal superior, mas, agora, a tendência é que nenhum aluno escolha este curso, que habilita apenas para a educação das séries iniciais, enquanto a pedagogia assegura também a formação para cargos de gestão, ensino fundamental e médio. Para sobreviver ao mercado, as instituições de ensino, amparadas pelas diretrizes, migrarão seus currículos de normal superior para pedagogia – o que, na prática, trará a extinção do curso.
Há instituições de ensino que lamentam essa visão por acreditar que a formação para os professores de séries iniciais requer um trabalho específico. "Todos os países do mundo têm dois níveis de formação no âmbito da educação, uma voltada para a gestão e pesquisa e outra profissionalizante, que responde às demandas do mercado. É uma perda para o Brasil", defende Gisela Wajskop, diretora do Instituto Singularidades, que ministra o curso normal superior.
A professora Eunice Durham, ex-conselheira do Conselho Nacional de Educação e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (Nupes/USP), também é bastante crítica da medida que enfraquece o normal superior. Segundo a acadêmica, seria necessário avaliar cuidadosamente os resultados do curso nos últimos anos antes de pôr em prática qualquer medida que o desmereça. "Destrói-se toda uma nova experiência que estava dando certo e se multiplicando no país, sem sequer uma avaliação dos seus resultados. É um ‘golpe’ porque passa por cima da legislação, pretendendo que uma mera portaria invalide determinações explícitas da lei maior da educação brasileira, a LDB", diz.
Por trás deste impasse, pulsa uma discussão polarizada da função do pedagogo, representada pela visão da USP e pela Universidade de Campinas (Unicamp). Em linhas gerais, enquanto a USP vê no pedagogo um teórico, um cientista da educação, que deve se debruçar sobre as questões macro deste segmento social, a Unicamp enxerga a pedagogia como o espaço para a ampla atuação docente. Isto faz com que a USP tenha visto com ressalvas alguns aspectos das diretrizes de pedagogia, que hoje fazem com que esta formação seja uma licenciatura, e não um bacharelado, como antes ocorria. "A formação como uma licenciatura cria um constrangimento para nós, porque a pedagogia é uma formação mais ampla, é o espaço do pesquisador, do acadêmico da educação também", diz Sonia Penin, diretora da Faculdade de Educação da USP. Embora diga ser entusiasta de mudanças curriculares, porque "a formação deve se aprimorar para acompanhar os novos tempos, as novas demandas", Sonia acredita que essas diretrizes "não contemplaram os entendimentos necessários para a formação do pedagogo".
A Unicamp, no entanto, acredita que a formação em licenciatura não impedirá que o docente se dedique à pesquisa. "O professor pode e deve produzir conhecimento. A carreira do acadêmico não é desvalorizada pelo fato de o currículo estar focado na docência", diz Angela Soligo, coordenadora do curso de pedagogia da Unicamp. E acrescenta: "Em vez de ficar brigando por manter a divisão, com medo de o pesquisador perder a importância, vamos brigar para valorizar a licenciatura plena, a docência", diz.
A carga horária também mudou com o novo currículo. As antigas diretrizes determinavam 2.800 horas, 1.800 delas teóricas e 1.000 práticas. Agora, a resolução impõe 2.800 horas teóricas, 300 de estágio e outras 100 dedicadas a outras práticas enriquecedoras do currículo – o que totaliza 3.200 horas. O currículo obriga instituições de ensino a reprogramar sua grade curricular para quatro anos. "Infelizmente, tem gente resistindo e querendo fazer o curso em menos tempo. Não é possível fazer este curso em menos de quatro anos porque ele é muito denso", diz Sonia Carvalho Salles, coordenadora do curso de pedagogia da Universidade de Brasília (UnB).
Outra questão avaliada pelos especialistas diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho destes profissionais de educação formados em pedagogia ou normal superior. "Os pedagogos reclamavam da falta de formação para a docência, cobravam esta habilitação", diz Adelson Cavalcanti de Queiroz, vice-presidente do Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem). Antes, um professor das séries iniciais deveria ser formado em normal superior e só poderia tornar-se um coordenador, supervisor ou diretor se fizesse um novo curso de graduação em pedagogia ou uma pós-graduação em gestão escolar.
Desta forma, o professor não podia ascender na carreira e virar um gestor. Do mesmo modo, um gestor também não poderia ser professor sem uma habilitação especial. O MEC comemora esta correção. "É sabido que o melhor orientador, supervisor ou diretor é aquele que já foi professor e que teve experiência em sala de aula. As novas diretrizes corrigem isso porque fazem do professor um possível gestor. Mais amplo, o currículo contribui para a gestão democrática das escolas", diz André Lázaro, secretário-executivo adjunto do MEC.
Em termos de contratações, o impacto não deve ser grande, dizem os especialistas. "Acho que os mercados não vão preterir um currículo em favor de outro. O que importa é que o pedagogo se mantenha estudando e mostre o valor que tem seu conhecimento aprofundado nas ciências da educação e na visão panorâmica do projeto pedagógico e da escola", diz Maria Inês Marcondes, professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da PUC-Rio. O único possível ponto de conflito são os concursos públicos, que podem exigir algum dos currículos, especificamente. "Isto pode gerar alguma confusão e fazer alguns pedagogos entrarem com ações judiciais", avalia Helena, da Anfop.
Impacto na formação
O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) mostra que a maioria dos jovens de 15 anos, portanto que deveriam ter terminado a 8a série, é analfabeta funcional, ou seja, incapaz de ler e entender, por exemplo, textos de livros didáticos. O Sistema de Avaliação do Ensino Básico (Saeb/MEC), hoje substituído pelo Prova Brasil, colheu, anos atrás, resultados que endossam esse quadro. Em 2001, o Saeb avaliou 300 mil alunos das séries terminais (4a e 8a do fundamental e 3a do ensino médio) em leitura e matemática. Obteve como resposta apenas 4,9% de notas consideradas adequadas. Estavam em situação crítica ou muito crítica 58,3% dos alunos brasileiros.
Segundo os especialistas, esta deficiência acompanha os alunos pelos anos escolares; as defasagens apenas se acumulam. "Uma das causas da evasão das universidades é que o aluno é mal alfabetizado e não consegue acompanhar a universidade. É um problema de ensino, não de aprendizagem", diz Ana Cristina, consultora.
Ela ainda questiona:"A reforma curricular mudará o fato de crianças, jovens e adultos, com passado escolar, não compreenderem o mundo?" Para alguns estudiosos, a formação mais ampla do educador sugerida pelo novo currículo pode contribuir, em alguma medida, para a melhora do ensino. "Acredito que é possível que o cenário da educação infantil mude com uma formação mais sólida do professor", diz Angela Soligo, da Unicamp. "Um currículo melhor é o primeiro passo", diz Wania Maria Madeira da Fonseca, presidente da Associação Universitária de Pedagogos do Brasil.
Outros acreditam que o impacto do currículo de pedagogia no quadro drástico da educação brasileira é mínimo, porque a qualidade do trabalho do professor dependeria de outros fatores que não apenas a sua formação inicial. "O desempenho do profissional também está ligado às condições de trabalho que ele tem", analisa Helena, da Anfop. "A influência do currículo neste cenário caótico é ínfima. Isso depende sim da valorização do profissional, da priorização da educação básica", diz Lourdes Hawatt, coordenadora do curso de pedagogia da Faculdade Martha Falcão, de Manaus, que já está trabalhando com o novo currículo desde o segundo semestre do ano passado.
Perspectiva legal
Depois de tantas mudanças, a expectativa dos especialistas da área é que não haja novas reformas. "O Brasil é carente de continuidade de projetos e de avaliações. Esperamos que agora a educação possa firmar suas bases nessas diretrizes sem ser surpreendida por novas alterações", analisa Ana Cristina, da Cadec. "As diretrizes não vão resolver o problema da educação e da falta de qualidade dos cursos oferecidos por muitas instituições de ensino. De todo modo, é um começo, é um norte", diz Angela Soligo, da Unicamp. Caso não haja muitas outras variáveis, daqui a dez anos o país poderá começar a enxergar os resultados agora plantados.