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Formação

Por uma formação integral

As instituições de ensino superior não devem servir apenas à preparação de mão de obra para o mercado de trabalho, acredita o filósofo Vladimir Safatle. O desenvolvimento de cidadãos tem prioridade nesse processo

Publicado em 19/12/2016

por Mariana Ezenwabasili

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Crítico de um ensino superior comprometido exclusivamente com a formação técnica voltada ao mercado de trabalho, Vladimir Safatle tem no currículo passagens por instituições de ensino superior com os mais diferentes perfis. Antes de se tornar professor de filosofia na Universidade de São Paulo, onde está desde 2003, deu aulas na Universidade Paulista (Unip), entre 1995 e 1998; e na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em 2003. Também atuou como docente visitante em instituições estrangeiras, como a Universidade Paris 8; a Universidade Paris Diderot, a Universidade de Toulouse, todas na França; a Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e o Stellenboch Institute for Advanced Studies, na África do Sul.

Aos 43 anos de idade, é colunista do jornal Folha de S.Paulo e autor de mais de 10 livros, entre eles O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (Cosac Naify, 2015) e Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), relacionados às suas pesquisas nas áreas de epistemologia da psicanálise e da psicologia, dos desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século 20 e da filosofia da música.

Em entrevista concedida à revista Ensino Superior em meio à participação no Ciclo Mutações, promovido pelo Sesc nas capitais Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo entre setembro e novembro, Safatle fala sobre o papel, o sentido e os desafios das IES em um período de aumento do índice de desemprego no Brasil. Para o pesquisador, o cenário mostra ser preciso constituirmos “um horizonte de empregabilidade efetiva” e desenvolvermos “um modelo de formação no qual quem passa pelo ensino superior tenha não só uma capacidade de intervenção profissional, mas também de reflexão crítica e de gosto pela pesquisa”.

A associação do acesso ao ensino superior à possibilidade de ascensão social em países como o Brasil tira o foco da continuidade dos estudos pelo simples desejo de conhecimento?
Existe uma tendência de tentar reduzir a importância do ensino superior a questões de empregabilidade. Mas, nesse ponto, há algo quase contraditório porque, hoje, não é verdade que o ensino superior consegue garantir empregos como garantia há 20, 30 anos. Atualmente, para se ter um subemprego, exige-se diploma de ensino superior. Ou seja, o grau de exigência, mesmo para empregos desqualificados, aumentou. Há uma degradação da figura do emprego. Desse modo, criar uma dinâmica na qual se justifica o valor do ensino superior por questões eminentemente mercadológicas e da empregabilidade é quase uma falácia atualmente. E isso parte de uma distorção fundamental, porque a principal função de uma universidade ou faculdade é fortalecer o processo de formação dos cidadãos; é permitir à república brasileira ter cidadãos capazes de operar em sociedades complexas, com valores complexos, com debates e conflitos incessantes, e não simplesmente fornecer um tipo de aptidão técnica para universos de empregos que são cada vez mais reduzidos.

O cenário se explica apenas devido à degradação da figura do emprego?
Infelizmente, o diploma não é garantia de emprego, muito mais agora com a limitação de gastos em saúde e educação. Ao limitar os seus gastos, o Estado não vai conseguir contratar mais médicos e mais enfermeiros. Ele vai ter de limitar também os gastos com contratação ou haverá um achatamento dos salários dos funcionários públicos. Com isso, os jovens depois de formados vão se deparar com um espaço de empregabilidade completamente deteriorado. É isso que vai acontecer se as coisas continuarem mais ou menos da forma que estão. A meu ver, nesse cenário, são necessárias duas coisas: constituir um horizonte de empregabilidade efetiva, que é indissociável, em um país como o Brasil, da capacidade de o Estado desenvolver serviços que possam, de fato, absorver e contratar pessoas; e, por outro lado, desenvolver um modelo de formação no qual as pessoas que passam pelo ensino superior tenham não só uma capacidade de intervenção profissional, mas também de reflexão crítica e de gosto por pesquisa.

Ainda é possível dizer que o ensino superior no Brasil é elitizado?
Menos do que se afirma. Só para você ter uma ideia, 60% dos alunos da Universidade de São Paulo (USP), que seria o maior exemplo da universidade de elite do Brasil, vêm de famílias que ganham até 10 salários mínimos. Quem ganha até 10 salários mínimos não é elite em lugar nenhum; essa é uma renda de família de classe média que pena para sobreviver. Mesmo com relação à expansão do ensino superior no Brasil, é bom lembrar que apenas 16% dos trabalhadores do país têm diploma de nível superior, o que é um número muito baixo. Um número adequado seria, pelo menos, 30%. Então, há um processo de ampliação da estrutura universitária brasileira que está muito em seu início, precisaria ser muito maior do que o que a gente tem.

Então, o que explica apenas 16% dos brasileiros terem ensino superior completo?
Entre outras coisas, o fato de termos tido durante muito tempo um sistema universitário atrofiado. Nos últimos 10 anos tivemos universidades federais no Nordeste, por exemplo, que triplicaram o seu número de alunos; universidades que tinham 15 mil, hoje têm 45 mil alunos. É uma coisa realmente impressionante. Só para termos uma ideia, Natal [no Rio Grande do Norte] tem mais ou menos 40 mil estudantes de ensino superior; Harvard [nos Estados Unidos] tem um total de 15 mil alunos, Oxford [na Inglaterra] tem 20 mil alunos, as universidades Yale e Princeton não têm, cada uma, mais de 10 mil alunos no total. Esses países têm universidades muito mais elitistas do que as nossas, que, ao contrário, são universidades de massa, um outro modelo. O modelo de ensino superior norte-americano e inglês é muito concentrado na formação da elite, e é por isso que eles – Estados Unidos e Inglaterra – saem nos rankings internacionais como países que têm as melhores universidades do mundo. Existe uma esquizofrenia brutal no Brasil: exigimos de nós mesmos que apareçamos no topo dos rankings internacionais, mas as universidades que aparecem superbem colocadas nesses rankings são aquelas que têm como função formar a elite de seus países. Como as universidades brasileiras são de massa, elas nunca vão conseguir competir com universidades que têm 15 mil alunos. É uma questão quase material.

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Como expandir o acesso ao ensino superior sem descuidar da qualidade do ensino?
Quando se expande o acesso, no mínimo, criam-se novos desafios. É muito mais fácil gerir uma IES que tenha 10 mil alunos; isso permite um trabalho quase individualizado com os estudantes. Harvard, por exemplo, tem um escritório em São Paulo, localizado na avenida Paulista, onde há funcionários monitorando a todo momento como estão os poucos alunos de Harvard que estão estudando em instituições aqui. Imagina se o Brasil consegue fazer isso? Na USP, onde dou aulas, há 94 mil alunos. Mandamos 3 mil alunos no ano passado para outras universidades do mundo inteiro. Como faríamos para monitorar in loco como estão estudando esses 3 mil alunos? A questão é o modelo de gestão e funcionamento das IES.

Há quem defenda a existência de IES voltadas para a formação profissional e de IES voltadas para a pesquisa, pensando em públicos específicos supostamente interessados em cada uma dessas vertentes de ensino. O que acha disso?
Não tem nada mais arcaico do que essa ideia. Ela é vendida como algo novo, mas, se pegarmos os textos do Monteiro Lobato sobre educação elaborados nos anos de 1920, 1930, iremos encontrar exatamente isso. Aliás, o lado ruim do processo da escola novista era este: a massa vai aprender a exercer uma função, um trabalho; a elite pode pesquisar, pode ter uma formação mais ampla, mais interdisciplinar; a massa aprende a fazer uma coisa, porque é para isso que ela serve. A proposta a qual a pergunta se refere diz respeito, com outras palavras, a essa mesma ideia: permitir que a pesquisa e a formação interdisciplinar fiquem em certos espaços de elite, enquanto o restante da população vai ter uma formação cada vez mais técnica no pior sentido. E mesmo do ponto de vista da empregabilidade, essa formação técnica não faz sentido, porque é uma formação técnica que tem como horizonte o estado atual das técnicas. Só que o estado atual das técnicas é o que há de mais mutável. Daqui a cinco anos, o estado atual das técnicas estará completamente diferente. O aluno do ensino puramente técnico de hoje aprenderá a operar um computador que, em breve, não existirá mais.

A formação técnica é dispensável?
Ela é uma formação suplementar, que não precisa de quatro anos para ser feita, pode se dar em seis meses ou em um ano em vários casos. Mas a questão é que, até mesmo considerando apenas o ponto de vista profissional, um bom profissional não é aquele que consegue só resolver problemas; um bom profissional é aquele que consegue produzir novas formas de pensar problemas, produzir novas respostas para pensar problemas e mesmo desconstruir problemas. E isso exige um tipo de formação diferente. A formação profissional que se vende hoje produz profissionais incompletos, que entrarão em um mercado globalizado que apresenta como concorrentes profissionais do mundo inteiro. Estes têm uma formação muito mais ampla, uma formação que lhes permite desenvolver novos problemas, colocar em questão velhas respostas. Quando fazemos uma dissociação entre pesquisa e formação técnica, estamos tirando a possibilidade de uma formação de horizonte mais ampla.

É muito determinismo dizer que há pessoas com perfil de pesquisadores e outras mais interessadas em atuar no mercado de trabalho?
Claro que isso pode acontecer, mas a questão é se essas pessoas estão tendo escolhas. É, sim, possível alguém chegar a um determinado momento da vida e dizer ‘eu quero trabalhar com litogravura em uma gráfica e estarei feliz da vida’. Mas a questão é: essa pessoa teve, de fato, possibilidade de escolher? O que acontece, na verdade, é que há pessoas que não têm possibilidade de escolher, porque estão oferecendo a elas apenas uma opção. Estamos oferecendo de fato a todos uma universidade? Ou, em um modelo dissociativo entre pesquisa e formação técnica, estaríamos simplesmente empurrando uma massa para um tipo de trabalho que vai ser mal pago, precário e, consequentemente, terá um nível de empregabilidade sempre baixo?

Para além do Estado, o setor privado não é capaz de absorver os profissionais recém-formados?
Se há uma coisa que as operações da investigação da Lava Jato mostraram é a realidade do setor privado brasileiro. Grande parte do setor privado brasileiro tem como a sua maior função viver de compras públicas. Devido ao fato de o nosso capitalismo ser um capitalismo monopolista de Estado, muitas vezes as empresas do setor privado não precisam se submeter a um processo amplo de concorrência. Assim, podem degradar seus serviços sem o menor problema e ainda serão pagas por serviços caros. Sem concorrência de fato, as empresas não vão criar um espaço no qual elas precisem dos melhores profissionais para se garantir em um mercado brutal.

Diante desse cenário, como as IES podem se ajustar?
Existe um desejo de saber, que é o elemento fundamental da vida na universidade. Se retiramos a existência desse desejo ou o transformamos em um subterfúgio, em alguma coisa que pode ser bela do ponto de vista poético, mas não tem mais realidade, não ensinamos para as pessoas que, antes de mais nada, o que está sendo colocado como experiência no ensino superior é o caráter fascinante do desejo de saber, que te faz produzir coisas que nem você imagina, e nem a sociedade imagina; coisas sobre as quais a sociedade vai descobrir para que servem daqui a 30 ou 40 anos. Nessa época, iremos dizer ‘como foi importante alguém ter feito isso’, porque muitas dessas conquistas são dadas como importantes a posteriori, mas imagina se no momento de suas descobertas elas já fossem dadas como sem importância… Todo o processo de desenvolvimento seria completamente bloqueado. Isso é o que está sendo retirado do nosso horizonte. O que posso dizer então é: que ensinemos aos alunos o puro e simples desejo de saber; assim, eles irão produzir muito mais do que podemos imaginar. Obviamente, isso tem um custo, diminui em certo sentido uma série de retornos imediatos. Pode parecer paradoxal, mas quanto mais desinteressada a universidade, mais ela produz um saber que vai poder produzir, do ponto de vista econômico, algum ganho realmente substancial.

Como sustentar isso na prática cotidiana da gestão?
Fui responsável pela criação de um mestrado em comunicação em uma universidade privada, a ESPM. Fiz o projeto desse mestrado e estive lá no primeiro ano de funcionamento para implementar. Percebi que aquela era uma instituição que estava disposta a fazer o que deveria ser feito: a biblioteca foi reconfigurada, foram comprados 4 mil exemplares de livros para que se formasse uma biblioteca de pesquisa. Nessa época, tive acesso a pessoas que estavam tentando desenvolver projetos de pós-graduação stricto sensu em outras IES privadas. Elas contavam o quão difícil era simplesmente montar uma biblioteca com uma contínua renovação de títulos em várias línguas, assinaturas de revistas acadêmicas etc. Saindo do universo do ensino superior, não estranho perceber essa dificuldade em um país como o nosso, em que 65% das escolas de educação básica não têm bibliotecas. Como o ensino pode funcionar em um país assim? Isso é um exemplo muito claro do desconhecimento do que significa e do que precisa um espaço de ensino.

E uma relação mais saudável dos jovens com o ensino superior é possível?
Hoje, impõe-se aos jovens universitários um discurso de que eles têm de entrar no ensino superior o mais rápido possível e de que essa etapa deve se configurar como algo rápido, para que se entre logo em um mercado de trabalho degradado com salários baixos, com intensificação de regime de trabalho. Francamente, não é nenhum horizonte fantástico que está sendo vendido aos alunos. Mas, se demonstramos aos estudantes que a sociedade precisa do desejo de saber deles, acredita em suas capacidades de elaborar criticamente novas perguntas, novas questões, em sua capacidade de se surpreender com as coisas… Esse é o nosso motor e a universidade é um espaço para potencializar isso. Essa visão muda a disposição dos jovens, que estão sendo destroçados no que têm de mais importante, o simples e complexo desejo de saber.

Autor

Mariana Ezenwabasili


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