NOTÍCIA

Ensino edição 237

Licenciaturas precisam ser menos teóricas, defende especialista

Em entrevista à Ensino Superior, Bárbara Born, professora e doutoranda em Stanford, fala sobre as dificuldades da formação docente junto à complexidade da sala de aula

Publicado em 26/03/2019

por Rubem Barros

barbara-licenciaturas Foto: divulgação Stanford

A indignação motivada pelo fato de a disciplina que ministrava não fazer parte das avaliações da Rede Municipal de São Paulo levou a então professora de história Bárbara Barbosa Born a mudar seu rumo no universo da educação.

Depois do lançamento da Prova São Paulo, em 2007, Bárbara fez parte de um grupo de estudos sobre avaliação na própria rede e tornou-se mestre com dissertação que relacionava o currículo e a prova municipal, defendida na Faculdade de Educação da USP. Mais tarde, desenhou, com as professoras Paula Louzano (hoje na Universidade Diego Portales, no Chile) e Rachel Lotan (ex-diretora do Programa de Formação de Stanford), o currículo do Programa de Especialização Docente (PED), para docentes do ensino fundamental, com foco no ensino centrado no aluno, iniciativa patrocinada pelo Centro Lemann, à qual hoje está vinculada.

Estendeu a visita a Stanford também para cursar o mestrado, voltado à formação docente, e o doutorado (em progresso), no qual se aprofun-da no desenvolvimento profissional dos professores. Em ambos os casos, teve a orientação do pesquisador Martin Carnoy, interlocutor constante de instituições brasileiras.

A convite do Grupo Anima, veio a São Paulo palestrar sobre formação docente e o ensino centrado no aluno. O Programa de Especialização Docente (PED) já tem turmas formadas em cinco universidades privadas e foram formados multiplicadores na Secretaria Estadual de Pernambuco. Está em processo de extensão a universidades públicas.

Para Bárbara Born, é importante que os professores disponham de um repertório técnico que não só os identifique como profissionais, mas que também os ajude no desafio de desenvolver as competências dos estudantes, cuja aprendizagem ela vê como objetivo central da educação. Para isso, as licenciaturas têm de se tornar menos teóricas e dar instrumentos mais concretos aos docentes.

Como foi o desenho do Programa de Especialização Docente (PED)?

Ele começou a ser desenhado por nós três [Paula Louzano, Rachel Lotan e Bárbara], depois outras pessoas se juntaram ao grupo. Juntas, fizemos o desenho completo de uma especialização lato sensu. Demos a formação para as equipes de quatro instituições parceiras e algumas outras e, em 2016 e 2017, fizemos uma formação bastante intensiva em sete instituições, algumas com turmas concluídas, como a UniBH, a São Judas, a Universidade Veiga de Almeida (RJ), o Grupo SEB (SP) e a Universidade Positivo (PR). A secretaria estadual de Educação de Pernambuco também já concluiu. No ano passado, formamos uma segunda turma de instituições, também com mais docentes daquelas que já estavam conosco, e agora com universidades públicas, como a Estadual do Ceará, a do Vale do Acaraú, em Sobral, a federal catarinense e a Universidade Federal do Sul da Bahia.

O foco são as metodologias de ensino?

Vai além. Olhamos para a formação do professor como algo mais amplo do que a simples entrega de um pacote de técnicas a serem usadas em sala de aula. O PED nasce como um programa de especialização de matemática. Hoje, também há para ciências. A razão de termos começado pela matemática é que encontramos mais pontos de confluência sobre o que é necessário ensinar, com apoio da literatura internacional, e por causa da necessidade de definir o currículo. Estávamos num momento de estruturação da Base Nacional Comum Curricular e seria mais fácil começar por aí, pois não havia questões como, por exemplo, a das diferenças regionais, como há em história. Além disso, matemática é um nó. Pelos resultados nas avaliações nacionais e internacionais, vimos que havia uma carência grande de conhecimento. Então, foi o piloto.

E qual a ideia central do programa?

Pensar a formação do professor como um conjunto de saberes e fazeres que potencializam a capacidade para lidar com a complexidade da sala de aula. O professor não vai aprender apenas metodologias. Trabalhamos aspectos, por exemplo, de como planejar uma aula para que ela seja centrada no aluno, como avaliar, que tipo de matemática ajuda a desenvolver o raciocínio em altos níveis cognitivos. Não é só o conteúdo matemático, mas o conhecimento pedagógico do conteúdo. A metodologia perpassa todo esse conjunto de saberes, mas não é a metodologia pela metodologia, e sim a serviço do desenvolvimento cognitivo do aluno. Ao saber o que ele está desenvolvendo, isso me leva a escolher uma determinada metodologia, mais apropriada para tal objetivo de aprendizagem.

Isso pressupõe o uso de metodologias variadas para o mesmo conteúdo, dependendo de situações e pessoas envolvidas?

É isso, mas também é mais do que isso. O professor precisa ter um repertório de metodologias, entender diferentes estratégias que podem ser aplicadas em diferentes contextos. Mas é partir de um princípio que chamamos de planejamento reverso, que é olhar para aonde eu quero chegar, ou aonde o meu aluno precisa chegar – o objetivo de aprendizagem – pensar o que esse estudante precisa desenvolver não em termos de saberes do conteúdo, mas em termos de aplicações, de desenvolvimento cognitivo. Assim, posso estruturar a aula para oferecer as ferramentas intelectuais necessárias para que ele alcance esse objetivo.

Pode dar um exemplo?

Se quero que o aluno seja capaz de escrever um argumento fundamentado, não faço um debate em sala de aula, pois isso mobilizaria outros domínios cognitivos. O debate poderia ser engajador, o aluno poderia ficar feliz, mas não necessariamente desenvolveria as habilidades necessárias de escrita. Se quero que ele seja capaz de articular argumentos, ter um ponto de vista por escrito, preciso fazer atividades que o ajudem a colocar no papel a articulação desse argumento. Vou fazer uma atividade com uma metodologia ativa. Se eles estiverem num pequeno grupo, por exemplo, peço que levantem os diferentes pontos de vista sobre a questão, sistematizem ou organizem por escrito, num organizador gráfico, como cada um desses argumentos se coloca em relação ao outro, como conectar os diferentes argumentos, faço que eles escolham o tipo de vocabulário compatível com a argumentação. Depois disso, peço que produzam esse material por escrito.

Se há problemas no domínio do processo pedagógico por parte dos professores, também há um conhecimento precário do objeto a ser ensinado, especialmente quando se fala no licenciado em pedagogia, que dá aula para os anos iniciais do fundamental. Como enfrentar esse problema?

Temos uma fragilidade documentada em relação ao professor dos anos iniciais, normalmente formado em pedagogia. Ele tem uma visão quase macro do que precisa ser ensinado, bem geral, sem curso de matemática, apenas de “metodologia de ensino da matemática”. Por outro lado, o professor dos anos finais tem uma formação quase toda focada no conteúdo e não tem um olhar para o como ensinar. O que se entende hoje na literatura sobre formação de professores, especialmente nos estudos sobre o ensino de matemática – e nesse campo, a grande referência é a Deborah Ball [da Escola de Educação da Universidade de Michigan] – é que existe um caminho intermediário que precisamos buscar: o conhecimento pedagógico do conteúdo. Ou seja, o conhecimento de matemática necessário para ensinar matemática. O professor dos anos iniciais, assim como o dos anos finais, não precisa saber toda a matemática que alguém que trabalha com matemática aplicada necessita saber. Não é preciso que ele saiba todo o repertório teórico da matemática, porque não é isso que vai fazer dele um professor melhor. Ele tem de saber a matemática que está ensinando, saber executá-la, tem de saber para si, mas tem de saber o que está envolvido no ato de ensinar frações, por exemplo. Como ele está aprendendo algo que deverá ensinar, mais do que simplesmente resolver uma conta que envolve frações, é preciso entender quais são os erros comuns que crianças de uma determinada faixa etária cometem ao aprender frações.

Qual a maior recorrência nesse tema?

As crianças tendem a achar que 1/8 é maior do que ¼, pois o 8 é maior do que o 4. É um erro comum, documentado, assim como o tipo de atividade ou de estratégia a se usar quando o aluno apresenta esse erro. É um conhecimento complexo. É pegar um objeto do conhecimento – nesse caso, a fração – e explorar a partir de múltiplos ângulos e estratégias, ver como esse objeto do conhecimento está relacionado com outros objetos, quais são os pontos de conexão e, portanto, como ele organiza o currículo. Se pensarmos em transformar a formação do professor para torná-lo mais apto ao exercício das suas atividades, a gente tem de pensar primeiro o que significa ser docente.  Quais conhecimentos e habilidades ele precisa ter para ser bom professor, para fazer com que os meninos se desenvolvam, que é o mais importante. E isso passa por reinventar o currículo das licenciaturas, mas  não enchendo de conteúdo matemático, e sim pensando onde e como esse conteúdo vai ser utilizado, algo voltado para a prática profissional do professor.

E como as universidades brasileiras têm lidado com essa necessidade de reformatar essa visão?

Há muitas iniciativas, infelizmente isoladas, mas existem. Por causa do PED, temos trazido uma literatura específica, focada nesse conhecimento pedagógico do conteúdo e em como eu olho para a matemática necessária para ensinar, mas não é a invenção da roda. Já há alguns grupos de pesquisa, como o da Universidade Federal de Pernambuco, que têm desenvolvido pesquisas mais aplicadas. O CAEM (Centro de Aperfeiçoamento do Ensino da Matemática), da USP, tem pesquisas sobre como ensinar determinados conteúdos. E temos encontrado uma receptividade muito grande junto aos parceiros do nosso projeto. A nossa proposta vem ao encontro de algo que já circula e que o diferencial, algo bem presente na produção acadêmica dessa área nos Estados Unidos, é trazer um pouco mais de estrutura, de coisas aplicadas, práticas. Quando observamos trabalhos com raiz francesa na área da educação, vemos que as ideias estão lá, mas de forma mais teórica. Muitas vezes faltam as pistas sobre como o professor consegue levar isso para a sala de aula. Já o que a literatura acadêmica estadunidense produz em relação ao ensino é algo muito prático, aplicado, mas que não é simplório. Está embasado em pilares teóricos, porém, vai um passo além, pois você não inventa a roda sozinho. Cito o exemplo da avaliação, a área do meu mestrado. Eu lia muito autores como o [sociólogo suíço Philippe] Perrenoud, muito conhecido no Brasil por aqueles que falam de avaliação. Achava as ideias dele ótimas, mas me davam muito pouco repertório para que eu construísse melhores avaliações. Fui buscar em outra literatura, outros autores, o que eu precisava para melhorar a minha prática.

A avaliação é um dos conteúdos menos trabalhados nos cursos de formação no Brasil, desde os seus níveis mais básicos. E é componente essencial para acompanhar o desenvolvimento dos alunos.

O professor Ocimar [Alavarse, da Feusp] chama isso de o paradoxo docente: o professor é um avaliador por excelência, está sempre avaliando seu aluno, pois isso faz parte da natureza da profissão, mas ele não aprende a avaliar. Quando aprende, e falo sobre todos os cursos de licenciatura com que tive contato, ele estuda a partir de uma perspectiva extremamente genérica, que diz “olha, é importante você olhar para esse sujeito como um sujeito múltiplo, com características diversas, então vamos fazer avaliação formativa”. Tudo bem, mas como eu faço? Insisto no que eu falava: não dá para esperar que o professor invente a roda. É preciso trazer as referências corretas, para que ele tenha um ponto de partida de onde construir sua prática. Não quero que o professor seja um reprodutor de instrumentos, que pegue um livro e copie e cole na sala de aula. Mas quero que ele entenda como fará para avaliar determinados domínios cognitivos sem usar uma prova, por exemplo. Ou como constrói uma boa prova.

Falta literatura específica para isso em português?

Há pouca, mas há. Nos últimos anos tem havido um esforço grande para traduzir materiais. Em função do PED, construímos uma série de parcerias para publicar mais livros nos campos de currículo, avaliação, ensino de matemática; têm saído traduções boas sobre esse conteúdo. É verdade, faltam traduções, mas falta a nossa academia aceitar que essa pessoa que está sendo formada na universidade é um profissional. E um profissional não é alguém que tem só conhecimento teórico, deve ter conhecimento técnico também. Ficamos reproduzindo um discurso de que ensinar técnicas de avaliar ou metodologias é tecnicismo. Essa é uma perspectiva que vem dos anos 70, 80. Mas faz parte da natureza de qualquer profissão aplicar o conhecimento que está sendo construído. Não dá para ser um seguidor da avaliação formativa se eu não souber como avaliar o aluno dessa forma, de como eu faço uma observação sistemática do trabalho em sala de aula e coleto informação sobre aprendizagem. É preciso saber o que observar, ter uma sistemática de observação. Isso envolve uma técnica, não é algo que se aprende da noite para o dia. Precisamos pensar se queremos formar grandes reprodutores de teoria ou pessoas capazes de aplicar essa teoria em sala de aula.

E como anda a formação dos formadores de professores?

É um grande nó, e diz respeito não só ao formador do professor, mas aos formadores do ensino superior de modo geral. Eles não receberam o preparo específico para formar profissionais. Como é o processo de seleção dos professores universitários? É alguém que fez um mestrado, um doutorado e tem pesquisa sobre o objeto do conhecimento que vai ensinar. E isso vale tanto para o cara da licenciatura, como para o do direito, da medicina. Não existe, de forma sistemática, uma formação que ajude esses professores a se prepararem e a pensarem o que precisam fazer. Não é porque alguém sabe muito sobre Vigotski que vou ajudar o professor a entender como Vigotski vai ser útil para ele compreender quem são seus alunos, para ele organizar a aula de uma maneira colaborativa. Ele pode até dizer que a aprendizagem decorre de uma interação social, mas não vai saber provocar uma situação em que a aprendizagem ocorra de maneira socializada. As universidades, de modo geral, não têm preocupação com esse caráter didático que está por trás de ensinar futuros profissionais.

Nas universidades privadas, há movimentação para uma renovação metodológica. A sua incorporação não pode ser uma oportunidade de repensar o papel do professor?

Minha vinda ao Brasil é muito casada com isso. Há esforços de algumas universidades nesse sentido. O Grupo Anima me convidou para esse simpósio, pois eles estão num processo de implementação de uma formação para seu corpo docente com a compreensão de que ensino é fundamental, e não só a pesquisa. É uma questão de entender qual é o perfil adequado para a universidade e como se pode ajudar o professor a melhorar suas práticas por meio da formação continuada. Não é por já ter o mestrado ou o doutorado que o professor tem o domínio de outros aspectos da formação docente. Quando ofereço formação para que eles possam se apropriar do conhecimento pedagógico do conteúdo, que vai além do saber teórico específico das áreas, isso significa aproveitar uma oportunidade.

Um dos pilares centrais que vocês trabalham em Stanford é a comunidade de aprendizagem. Como começa esse processo?

A ideia de comunidade de prática está muito atrelada à visão de que existe um corpo profissional, ao fato de que aquela profissão tem de saber o que é único, particular dela. O primeiro passo é olhar para a profissão docente como uma profissão que tem saberes próprios. É muito difícil a formação de uma comunidade de práticas quando não existe uma estrutura institucional. O primeiro passo para que ela aconteça é que as instituições comecem a criar condições que favoreçam a formação dessas comunidades por meio da institucionalização de horários coletivos, para que os professores possam estar juntos, trocar, mas também por meio do estudo. Uma comunidade de práticas é mais do que um conjunto de pessoas que se sentam em torno de uma mesa e conversam sobre sua profissão. É algo mais sistemático, orientado por saberes desenvolvidos naquele campo, para que sejam apropriados. Não é composta apenas pelos docentes da escola ou da universidade, e sim pelo grupo dos profissionais que estão desenvolvendo o conhecimento. As comunidades micro – da escola, da universidade – têm de dialogar o tempo todo com o conhecimento produzido na comunidade macro. Daí a importância de essa comunidade investigar, estudar, se apropriar dos saberes que faltam naquele contexto para que chegue a uma prática mais eficiente e, principalmente, mais centrada no aluno. A profissão de educador tem o princípio ético de servir o outro, a comunidade de prática tem de ser orientada para melhorar a implementação desse princípio ético. Como nós, enquanto grupo que serve o outro, que trabalha em prol das aprendizagens dos alunos, podemos nos fortalecer por meio das trocas, das experiências, das coisas que construímos juntos: esse tem de ser o objetivo principal da comunidade.

licenciaturas teóricas

“A profissão de educador tem o princípio ético de servir o outro” (foto: divulgação Stanford)

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Autor

Rubem Barros


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