NOTÍCIA
Especialistas em Educação e Comunicação Não Violenta afirmam que a violência no Brasil está naturalizada e é preciso retomar valores como cooperação, solidariedade e empatia
Publicado em 23/05/2023
A violência se naturalizou no Brasil e chegou de maneira brutal às salas de aula. Levantamento realizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apontou que desde 2002 ocorreram 24 ataques em escolas no Brasil. Mais da metade dos casos ocorreu nos últimos dois anos. Os episódios recentes ocorridos na Vila Sônia, na capital paulista, e o de Blumenau, em Santa Catarina, voltaram a aterrorizar a população e causar pânico nas famílias.
Enquanto os governos estaduais e municipais tomam iniciativas na área da segurança das escolas, o governo federal tem feito ações para responsabilizar os emissores de ameaças e discursos de ódio nas redes sociais e criou um grupo interministerial para analisar propostas de políticas públicas. E há a discussão que se arrasta há anos para a responsabilização das plataformas por meio das quais esses discursos podem ser veiculados.
A violência é um fenômeno sistêmico, multifatorial e complexo e a segurança policial nas escolas não resolve o problema de imediato. “A presença da polícia nas escolas dá uma sensação de segurança. É só uma sensação mesmo”, diz Vanildes Gonçalves dos Santos, professora no núcleo de formação geral e humanística da Universidade Católica de Brasília e membro da Cátedra UNESCO de Juventude, educação e sociedade. “O policiamento cuida das consequências, não das causas”, reitera José Ivaldo Araújo de Lucena, também professor do mesmo núcleo na UCB e membro da Cátedra.
A Cátedra UNESCO de Juventude, educação e sociedade é coordenada por Geraldo Caliman, reúne 17 universidades no Brasil e se configura como uma rede internacional de pesquisa, ensino e extensão. Até a pandemia, funcionaram os Observatórios da Violência nas IES participantes, que poderão ser retomados em breve. É sobretudo na extensão que Vanildes e Araújo atuam, aplicando em escolas do Distrito Federal a metodologia da Comunicação Não Violenta (CNV). São palestras, oficinas, rodas de conversa. “Já nem conseguimos mais contar quantas intervenções fizemos”, diz Araújo.
No artigo “O diálogo na comunicação não violenta para uma cultura de paz na escola”, escrito pelos dois professores para o livro Diálogo – uma perspectiva educacional – publicado pela Cátedra – há menção à pesquisa que mostra muito bem o contexto que a atividade extensionista tenta transformar. Encomendada pelo Sindicato dos Professores do Distrito Federal e realizada entre 2017 e 2018, a pesquisa apontou que 97,15% dos professores da rede pública de ensino do DF já presenciaram algum tipo de violência e 57,17% já foram vítimas dessa violência. 96,36% dos professores já presenciaram violência entre os estudantes.
Vanildes conta que quando episódios de violência eclodem nas escolas, adolescentes e jovens se transformam em problemas. Não o são, tampouco são a solução. “São sujeitos de direito, portanto parte integrante na construção de uma outra sociedade”, diz Vanildes. “O que percebemos é que a situação das violências que envolvem esses jovens está presente há algum tempo, nos diversos ambientes. Tanto é que nos espaços de clínicas de psicologia tem crescido muito o atendimento aos adolescentes com as questões das mutilações, a violência que os adolescentes cometem contra si mesmos.”
A professora explica que os adolescentes estão em processo de desenvolvimento e isso causa conflitos internos e externos, com familiares e colegas que não os compreendem. Esses conflitos se exacerbam, ficam mais intensos se eles não têm segurança nem oportunidade para falar sobre eles. Os adolescentes, então, começam a praticar auto-violência e a violência contra os outros, sobretudo contra os que cometem bullying. A escola, primeiro espaço social de crianças, adolescentes e jovens, acaba se tornando um lugar de muitos conflitos. A questão, entretanto, não é a existência deles, mas a incapacidade das pessoas de compreendê-los e resolvê-los de forma não violenta. Nos últimos tempos há uma violência mais exacerbada, com a utilização de armas brancas e uso de palavras muito mais pesadas no trato de um com o outro.
As redes sociais veiculam os discursos de ódio. Para Araújo, “estamos numa sociedade em disputa – por poder, espaço – e as redes sociais viraram uma espécie de terra de ninguém, não há dispositivo legal e ético de controle”. “O jovem acaba se identificando com esses discursos, emitindo-os, ou é atingido por eles”, explica Vanildes. Diante da violência, as pessoas se acuam, se retraem, ou se defendem também de maneira violenta. É a intensificação do ciclo de violência. No Brasil, a violência está naturalizada. “É como se fosse um ‘não tem jeito’, a violência é a única forma de existir na relação com o outro. É preciso desnaturalizar essa violência, retomar valores da cooperação, solidariedade, uma empatia que permita perceber como o lugar de um afeta o lugar do outro.” Nesse sentido, diz Vanildes, escolas e universidades têm um papel social fundamental, pois é o lugar da aprendizagem, é onde os sujeitos estão para aprender, reaprender e criar.
Araújo conta que é necessário ressignificar o conceito de conflito e agressividade. “Na conjuntura das metodologias de enfrentamento da violência e promoção da cultura de paz, consideramos a agressividade como força vital. É preciso ser agressivo para dar conta dos desafios cotidianos – o trânsito, as demandas de estudo ou para garantir o próprio sustento. É preciso um nível dessa energia vital, que chamamos de agressividade, mas essa mesma agressividade se torna sinônimo de violência quando usada para atacar o outro, e esse ataque ocorre por necessidades não atendidas.” São inúmeras e precisam ser ditas.
Numa das experiências realizadas por meio da Cátedra em escola pública do DF, Araújo trabalhou com os adolescentes mais indisciplinados da escola. A fala recorrente dos estudantes nos primeiros encontros foi: eu não me sinto escutado, nem aqui nem em casa. “E nós nos perguntamos: onde há espaço na sociedade para as escutas e diálogos autênticos? Para além das questões que estão colocadas – ideológicas, políticas, as desigualdades sociais, culturais e educacionais – dois seres humanos podem se entender por meio do diálogo.” Ele conta que quando dois meninos em conflito são colocados frente a frente, eles sentem vergonha.
Para Araújo, escolas e universidades são territórios em potencial para o cultivo de uma cultura de paz. “Eu brinco que a gente precisa escandalizar também. Escandalizar atitudes de amor, de cooperação, de solidariedade.” Para ele, a BNCC acertou quando privilegiou as competências socioemocionais na educação, superior ou básica, “porque o mundo parece desafetado, em processo de desumanização”.
A ação na escola precisa ser sistêmica, uma vez que a violência é sistêmica. Ao trabalhar com as metodologias da comunicação não violenta com os alunos, Vanildes e Araújo perceberam a necessidade de trabalhar também com os professores. “Os estudantes aprendem a dizer o que não conseguiam dizer, os não-ditos que existiam, mas se os professores não aprendem a escutar e a dizer os não-ditos deles, para criar uma comunicação que gere conexão, o processo resultará em bagunça lá na frente.”
Ao pensar nos espaços das escolas públicas, muito se observa acerca das suas vulnerabilidades e das dificuldades dos alunos. Há, entretanto, muita potência. “O sujeito é potente para a violência, mas é potente também para a não violência”, diz Vanildes. Tanto uma atitude quanto outra pode ser ensinada, aprendida, desaprendida ou reaprendida.
Uma das primeiras abordagens nas oficinas junto aos estudantes é acerca do autoconhecimento. A pessoa precisa saber quem ela é, de onde veio. “Retomamos a questão da identidade familiar, que tem uma ancestralidade. No Brasil, há questões ligadas aos povos indígenas, aos negros e aos brancos. É importante reconhecer a violência presente na formação do país, e que essa violência atingiu corpos bem demarcados. A partir desse reconhecimento, diz Vanildes, é possível se dar conta de que há formas não violentas para se configurar as relações.”
Uma vez que a violência é sistêmica, não é de um dia para o outro que o trabalho nas escolas, por meio da comunicação não violenta, surte um efeito capaz de dar conta de situações extremas. Mudar a cultura de violência é um processo, não uma ação emergencial. Vanildes e Araújo apontaram o Caderno de orientações para pais e responsáveis, elaborado pelo Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE), da Universidade Federal de Goiás, como um instrumento capaz de mobilizar e fortalecer a comunidade escolar nos momentos de tensão em função dos atentados.
Elaborado no âmbito do projeto extensionista chamado “Rompendo o silêncio”, coordenado pela psicóloga escolar Anna Carime Souza, o Caderno foi prescrito por ela e pela professora Célia Sebastiana Silva. Anna trabalha na educação básica do CEPAE, atuando junto aos estudantes, famílias e docentes. O projeto de extensão “Rompendo o silêncio” surgiu de um protagonismo juvenil. “Em 2019, um grupo de meninas adolescentes, do nono ano, percebeu violências na escola e queria ajuda para resolver. Sentamos, debatemos, ampliamos para as assembleias estudantis e o projeto foi sendo construído.”
Esse espaço de escuta propicia que as violências sejam denunciadas. Anna conta que na última pesquisa realizada, as principais causas internas de episódios de violência eram bullying, racismo e brigas entre estudantes.
Como centro de referência e excelência, no CEPAE há professores contratados pela UFG, entre eles, mestrandos e doutorandos. Mas o cenário no país é bem diferente e por isso Anna elenca mais uma causa para a violência nas escolas: o ambiente escolar e seus trabalhadores são desvalorizados. “É como se não houvesse ninguém pela escola. É preciso cuidar melhor dela.”
Ela conta que a consequência direta dos atentados recentes foi o pânico nas famílias, que acabou chegando até as crianças de maneira incompreensível. “Soubemos de escolas em que turmas inteiras de alunos se mobilizaram para levar facas e spray de pimenta para se defenderem.” Daí a necessidade do caderno de orientações, que traz, entre outros conselhos, a necessidade de os pais conversarem com os filhos sobre o medo que a situação gera.
Não é possível lidar com a violência só nos momentos de emergência. “Trabalhamos com oficinas, rodas de conversa com estudantes de todas as idades, pais e professores, para discutir a violência. Criamos momentos específicos, como a semana contra o bullying, e incentivamos a arte e a cultura, presentes em todos os eventos, para mostrar que podemos produzir coisas boas também.” Cuidar das relações entre alunos e professores e entre os estudantes é fundamental, diz Anna. E atentar à saúde mental de professores e estudantes.
Anna traz, ainda, a necessidade da presença do psicólogo escolar, que não atende clinicamente, mas atua no coletivo. Há lei federal que obriga a contratação de psicólogo e assistente social. “O problema, infelizmente, é que essa lei precisa ser regulamentada pelos municípios e estados e nem todos estão dispostos a investir nessas contratações.” Acesse o Caderno de Orientações:
Rompendo_o_Silêncio_-_caderno_de_orientações