NOTÍCIA

Edição 275

O papel que as universidades têm que ocupar na escrita

Cabe à universidade ensinar a língua portuguesa padrão, ensinar os alunos a escrever ortograficamente, a transmitir suas ideias, para que sejam entendidos, respeitados e inseridos na sociedade.

Publicado em 26/05/2023

por Karen Cardial

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A alfabetização é o momento crucial do aprendizado da escrita. Mas isso não torna a educação básica a única responsável por ensinar os alunos a escrever. Há muitos fatores que influenciam ao longo dos anos, enquanto a escrita avança. É comum adolescentes do 8º e 9º ano do ensino fundamental com dificuldades persistentes. Eles levam adiante as dúvidas dos anos anteriores e as carregam até o ensino médio. À medida que os anos avançam, os textos e suas complexidades aumentam. Os estudantes que estão hoje na universidade estiveram dois anos no ensino remoto, que trouxe grandes consequências para a escrita. Embora tenham acontecido tentativas valiosas para superar essa lacuna, o impacto foi gigante.

Daniela Mara Lima Oliveira Guimarães, graduada em Letras com licenciatura plena em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escreveu um artigo sobre os erros ortográficos nas redações do Enem. Sua pesquisa constatou um nível relevante de erros ortográficos – pontuação, organização de frases, dificuldade de acentuação, coesão, entre outros –, em textos de alunos que vão chegar às universidades.

Como qualquer outro processo de aprendizado, o da escrita não funciona igual para todos. Um aluno pode escrever um texto com bons argumentos e apresentar dificuldades na ortografia. Daniela Oliveira, que também é mestra e doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG, explica que há diversas habilidades envolvidas no processo da escrita. Muitas camadas com as quais o cérebro tem de lidar: a forma convencional da ortografia, a organização das frases e a ligação entre elas, a informatividade do texto, a relação entre os parágrafos, entre outras.

 

Os níveis de dificuldade

 

Quando se pensa nos diversos níveis de dificuldade da escrita, o líder é o acento ortográfico, mas os alunos também têm dificuldade na separação silábica. Nas palavras com “s”, “ç”, “ss”, “sc”, “x”, “z”, que não possuem regra e dependem da memorização para a escrita correta, os erros são frequentes. No nível gramatical, temos, por exemplo, a concordância verbal, as ambiguidades (é preciso reler os textos), a coerência e a coesão. Daniela alerta sobre o cuidado de não colocar os erros acima de tudo, tampouco diminuir o aluno que errou. “O aluno que escreve errado tem o direito de saber que errou e à instrução, pois a escrita formal é a porta para muitos caminhos, inclusive para o mercado de trabalho.”

Cabe à universidade ensinar a língua portuguesa padrão, ensinar os alunos a escrever ortograficamente, a transmitir suas ideias, para que sejam entendidos, respeitados e inseridos na sociedade.

Wagner Dias, doutor em Didática pela Universidade Laval, no Canadá, observa que, cada vez mais, os estudantes chegam à universidade com dificuldade em lidar com textos. “É preciso tato para fazer abordagens relacionadas à escrita e à leitura, para que os estudantes não se desmotivem na busca por conhecimento. No entanto, como profissionais do ensino superior, nos compete o rigor e é nossa responsabilidade auxiliá-los na evolução dos processos comunicativos”, enfatiza.

 

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Daniela Oliveira

Para Daniela Oliveira, “aprendemos a escrever, escrevendo. Tendo textos corrigidos, tendo instrução e oportunidades reais de escrever”. (Crédito da foto: Arquivo pessoal)

Daniela, que também leciona na faculdade de Letras da UFMG e realiza pesquisas de linguística aplicada, aquisição da fala e da escrita e o ensino da língua portuguesa, conta que um dia uma aluna escreveu a palavra “sam”, no lugar de “são”, num texto acadêmico. “Foi assustador, pois ela já estava na metade do curso de Letras”, conta Daniela. Ao ler os textos da aluna, a professora identificou outras dificuldades de escrita e que a estudante precisava de instruções explícitas. “Muitas vezes, nós, professores universitários, não paramos para ler os textos dos alunos com a devida atenção, e passamos por cima de questões que podem ter um impacto negativo na vida do aluno, como numa entrevista de emprego, por exemplo.”

Wagner, que também é doutor e mestre em Ciências Humanas/Educação, pela PUC-Rio, viveu uma experiência durante um estágio em seu primeiro doutorado, com alunos do curso de Pedagogia, numa disciplina cujo foco era a leitura e a escrita. Os primeiros textos que levou para ler em casa, para compreender como poderia ajudar os alunos, estavam pobres, mal pontuados, com incoerências ortográficas, verbos mal conjugados, mas traziam a realidade da vida dos alunos, o que o emocionou. “Passei a levar obras literárias, de literatura infantil, poesias, crônicas e contos para a sala de aula, para que, toda semana, um livro – o que cada um desejasse – fosse levado para casa”, conta.

 

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A atividade proposta pelo professor era que na semana seguinte os estudantes falassem sobre a experiência de leitura e escrevessem pequenos parágrafos sobre os textos lidos. A prática durou um semestre letivo e, ao final, Wagner percebeu alunos mais envolvidos com a leitura, descobrindo o prazer de ler. Alguns até imitavam estilos de autores que admiraram, e gradativamente os textos começaram a ser mais claros. “Não alcancei um índice de excelência, mas algo mudou. Houve avanços e é em como avançar que devemos pensar, sem responsabilizar no professor do período seguinte, sem culpar o do período anterior”, pontua. Vale destacar que todos os alunos da prática citada receberam comentários sobre seus textos e tiveram a chance de refazê-los, construindo-os, desconstruindo-os e lapidando. “Aprendi que escrever exige tempo para a reflexão e para a organização de ideias. Tempo para admirar o que se escreve, para colocar-se no lugar do leitor, tempo esse que nos falta, na ingrata missão de dar notas, nessa produção desenfreada e pouco madura, sem sabor e zelo”, reflete.

 

Wagner Dias

Wagner Dias conta que “há professores que ao escreverem não conseguem articular um período e que cometem incoerências ortográficas gritantes”. (Crédito: Arquivo pessoal)

 

Diversidade na escrita

 

Todas as disciplinas, inclusive as de exatas, envolvem o conhecimento da linguagem e trabalham com leitura, interpretação de texto e escrita. Como é possível para o professor, no tempo de uma aula, ensinar o conteúdo de sua disciplina e ainda ensinar o aluno a escrever? É complexo, mas é também muito diverso. Se observarmos as redações dos alunos, desde o 1° ano do ensino fundamental até o 3° ano do ensino médio e da universidade ainda mais, vemos o quanto é heterogêneo. Há os que têm dificuldade com a escrita na organização das ideias, os que têm dificuldade na concordância verbal. Um professor de produção de texto pode trabalhar tais questões, mas precisa de tempo e espaço, para ler os textos dos alunos e ter um olhar individual para essa heterogeneidade.

 

Os caminhos

 

Um ponto importante é a correção e revisão do texto. O aluno precisa ter seu texto corrigido. Daniela Oliveira, que tem artigos em revistas na área de linguística e educação, explica que na falta de um monitor que corrija o texto junto com o aluno, há plataformas de correção de redação, com custo reduzido, onde o aluno envia seu texto, aponta suas dificuldades e recebe um retorno para que possa reescrevê-lo. Há outras saídas, como alunos ajudarem outros alunos, pós-graduandos que ajudam graduandos, alunos do curso de Letras, que trabalham com monitoria de correção de textos nos cursinhos e escolas, que também podem colaborar na universidade, em outros cursos. Não há garantia de que, em um semestre, os alunos conseguirão superar todas as dificuldades com a escrita, mas existem as disciplinas on-line, com assistência de monitores. O aprendizado da escrita é contínuo e a conscientização dos alunos sobre a importância dos textos, de saberem escrever e serem compreendidos, é fundamental no trilhar de um caminho de aprendizado constante, discorre Daniela.

 

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Será que quanto mais leio, melhor escrevo? Hoje, na internet, em smartphones, as pessoas leem muito. Mas, como essa leitura reflete, de fato, na nossa escrita? Com velocidade e de forma superficial, lemos mais, mas sem profundidade. O resultado são alunos que desistem ao se depararem com textos mais extensos na universidade. De acordo com Daniela Oliveira, devemos ter cuidado com a relação entre leitura e escrita e nos atentarmos ao que estamos lendo e como estamos lendo. “A leitura ajuda através da experiência lexical – a aquisição de vocabulário –, do domínio de diferentes temáticas para adentrar-se num conteúdo e escrever sobre ele, e na construção de frases, quando há identificação com a escrita de um autor.” Há pessoas que também leem muito, mas que não buscam o aperfeiçoamento da escrita, o cérebro busca outras informações, como a fruição, e é quando a leitura não contribui para a melhora da escrita. “Aprendemos a escrever, escrevendo. Tendo textos corrigidos, tendo instrução, tendo oportunidades reais de escrever”, declara Daniela.

 

Não estamos sós

 

Não é só o estudante universitário que apresenta dificuldades na escrita. Wagner, que participa de defesas de TCC, mestrados, doutorados e avalia artigos científicos, conta que recusa artigos de professores universitários, doutores e mestres, pois muitos de seus textos não conseguem comunicar. “Há professores que não articulam um período e que cometem incoerências ortográficas gritantes, que confundem objetivos com conclusões e que utilizam vocábulos com sentidos absolutamente opostos àqueles que seriam convenientes à expressão de uma ideia”, aponta. Precisamos, também, de professores leitores – leitores eficazes – e professores que escrevam com clareza. A formação de leitores é também missão da universidade.
“Olhar para o aluno como indivíduo, e para o caminho que ele percorreu, ajuda a equipe gestora a se organizar para ajudá-lo com a convicção de que o ensino da escrita é muito importante”, conclui Daniela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autor

Karen Cardial


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