NOTÍCIA

Edição 276

Sem financiamento, sem diploma

Acesso democrático à educação superior exige esforços do poder público e empenho das organizações privadas

Publicado em 20/07/2023

por Gustavo Lima

Capa 276 Falta de dinheiro é a principal razão para a desistência da graduação (foto: Freepik)

Questões financeiras são os principais fatores que levam discentes a desistirem da graduação, aponta a segunda edição da pesquisa O que os alunos realmente pensam sobre o ensino superior?, realizada pela Workalove em parceria com o Instituto Semesp. Os resultados do estudo, que aconteceu entre os dias 30 de março e 26 de abril de 2023, levantam importantes indagações, do tipo “o quão democrática é a minha IES?”. A desigualdade social é uma realidade. E para garantir o acesso mais justo à educação superior é preciso esforço tanto do poder público quanto das organizações privadas.

As dificuldades financeiras bateram à porta de Ariel Fernandes no período em que se matriculou no curso de Produção Audiovisual do Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). Hoje, aos 27 anos, o jovem conta que precisou trancar a matrícula duas vezes e os motivos envolviam dinheiro. Da primeira vez, após dar início aos estudos em 2020, a crise no mercado causada pela pandemia da covid-19 foi crucial para a decisão.

Já na segunda, Ariel explica que, após a entrega de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), foi informado de que, devido a pendências em disciplinas de adaptação, não poderia finalizar o curso. “A instituição não tentou entender o motivo. Quando entrei em contato com a coordenação geral dos cursos de comunicação, fui informado de que o motivo foi minha ‘falta de atenção’ para tais disciplinas, e que a única alternativa seria realizar a matrícula no semestre seguinte para cursar as disciplinas pendentes – e pagar por elas”, relata. Segundo o rapaz, na primeira vez em que sua matrícula foi trancada, a instituição também não buscou entender as razões.

 

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Com João*, de 25 anos, estudante de bacharelado e licenciatura em filosofia na Universidade de São Paulo (USP), a pandemia também foi razão para um quase trancamento, mas, em seu caso, as questões financeiras fizeram com que se mantivesse matriculado. “O trancamento não foi feito porque eu perderia um auxílio financeiro que, na época, era de R$ 400 e muito valioso para mim”, explica. Ele comenta que, apesar de o valor recebido estar “bastante desajustado” diante do custo de vida, “era algo que fazia toda a diferença no fim do mês”.

João pensou no trancamento de sua matrícula devido ao estado psicológico em que se encontrava. “Mas, sinceramente, acredito que no fundo tudo derivou de questões financeiras”, declara. O estudante considera a postura compreensiva e flexível dos professores como um dos fatores que o incentivaram a dar continuidade aos estudos. “A meu ver, o papel da instituição também é entender que muitas vezes o aluno tem questões mais urgentes.”

 

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João enfatiza que, até 2022, sua principal vontade era ir para a sala de aula e, paralelamente, seguir carreira acadêmica. “Mas a permanência é uma questão que muitas vezes está para além de nós, alunos. Por exemplo, recebia desde 2022 uma bolsa de iniciação científica no valor de R$ 800 que exigia dedicação exclusiva, mas que não cobria inteiramente o custo do meu aluguel. São coisas básicas que demandam dinheiro para serem realizadas, que não deveriam ser uma preocupação para nós, mas que são e que fazem toda a diferença. Afinal, como me dedicar do modo como a universidade e/ou as agências de fomento exigem, se os meus pais estão envelhecendo sem a garantia de que futuramente poderei ajudá-los como eu gostaria? A realidade brasileira piorou muito nos últimos cinco anos”, opina.

“Por razões financeiras e psicológicas, não consegui desfrutar da oportunidade que mais me fez lutar por esta bolsa: o financiamento integral de um intercâmbio. Talvez, da minha parte, seja querer demais desenvolver uma iniciação científica na Europa. Eu sempre quis ser professor e sou apaixonado pelo jeito que a pesquisa funciona. Às vezes, estou em aula e choro de emoção ao ver como filosofia e docência se entrelaçam de maneira tão bonita — um choro que, talvez, não existisse se eu não estivesse nesta fase de ‘despedida’. O aperto no coração é grande, mas entendo que seja melhor para mim a alternativa de concluir o curso ao mesmo tempo que crio raízes em outra área”, finaliza.

 

Financiamento privado

Beto Dantas, COO do Pravaler, ressalta que em seus mais de 20 anos no mercado de educação, a fintech concedeu cerca de 8 bilhões em créditos. “Em 2022, mais de 30 mil pessoas aderiram ao financiamento estudantil, crescimento de 100% no volume de novos alunos em relação ao ano de 2021. Se considerarmos nosso marketplace de bolsas de estudos, contabilizamos mais de 60 mil ingressantes no ensino superior em 2022. Estamos com a expectativa de que esse número aumente ainda mais em 2023”, detalha. Dantas afirma que a busca pelo financiamento estudantil privado tem crescido ano a ano. Na análise do executivo, a demanda estaria relacionada “ao entendimento por parte dos estudantes de que a formação superior é a principal fonte para conquistar uma boa colocação no mercado de trabalho”.

Levantamento de janeiro a março de 2023 mostra que 418.222 pessoas buscaram o serviço do Pravaler, um crescimento de mais de 72,8% comparado ao mesmo período de 2022. A região Sudeste lidera o ranking com 48%, seguida do Nordeste, com 25% e o Sul, com 13%. Ainda segundo o levantamento, as cinco graduações mais procuradas foram Direito, Psicologia, Enfermagem, Medicina e Medicina Veterinária. Embora conhecesse o financiamento estudantil como possível caminho para dar continuidade aos estudos, Ariel comenta que, por incertezas em relação ao futuro, não o buscou. “Conheci pessoas que fizeram cursos por meio de financiamento, mas, como tenho nome no Serasa, tive receio de aderir ao programa e me enrolar futuramente, considerando o mercado difícil da minha área”, pontua. Na pesquisa desenvolvida pela Workalove, é considerado que as expectativas dos alunos ao ingressar no ensino superior são conseguir emprego, trabalho e renda.

 

As engrenagens no MEC

No dia 1º de junho, os estudantes da área de Medicina foram contemplados com um aumento no teto do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O anúncio foi feito pelo ministro da Educação, Camilo Santana. No comunicado, Santana informou que o teto passaria para o valor de R$ 60 mil por semestre, um reajuste de 39,6% em relação ao anterior e que passou a valer a partir do dia 14 de junho. O ministro ainda adiantou que, em breve, uma nova lei será enviada para o Congresso Nacional. “A lei vai fazer outras modificações que também são demandas recebidas por nós, ouvindo alunos, professores e faculdades”, adiantou.

Criado em 1999 pelo MEC, o Fies passou por diversas mudanças ao longo das décadas. Marcado por falhas e acertos, o programa hoje é novamente reformulado pelo comitê gestor, no intuito de fortalecê-lo. Em entrevista publicada na edição anterior da Ensino Superior, a secretária da Educação Superior do MEC, Denise Pires de Carvalho, confirmou planos para a reformulação do Fies e garantiu que o programa repaginado atenderá a “diferentes dimensões”. Denise, que também ocupa o cargo de presidente do comitê, reforçou que o Fies foi enfraquecido nos últimos anos.

Em 2017, por exemplo, o limite de financiamento foi reduzido de R$ 42 mil por semestre para R$ 30 mil, o que fez as vagas ofertadas caírem de 250 mil para 150 mil. Já em 2021, projeções apresentadas em documento redigido pelo Semesp apontaram que, à época, o programa não alcançava 10% das classes C e D. A secretária garante que, se aprovado, o Fies reformulado terá um olhar diferenciado para estudantes de maior vulnerabilidade econômica.

 

Esforços conjuntos

Dantas reconhece que a discussão para a ampliação do financiamento estudantil no Brasil é abrangente e exige a atuação de diversos fatores do sistema educacional para que as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) sejam alcançadas. “No ano passado, dez propostas para desenvolver o ensino superior brasileiro foram apresentadas no Congresso Brasileiro de Educação Superior Particular (CBESP). O documento, desenvolvido pelo Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior, trouxe iniciativas que devem nortear a atuação do Fórum e as políticas públicas brasileiras nos próximos anos, inclusive a criação de um novo modelo de financiamento estudantil que contemple formas inteligentes de pagamento, condicionadas à renda dos egressos.

No Pravaler, a adesão ao financiamento pode ser feita em qualquer período do ano, sem necessidade de comprovar a nota do Enem, não há limite de vagas e está disponível tanto para calouros quanto para veteranos.

Para Dantas, tanto o Fies quanto o Pravaler podem contribuir para que cada vez mais pessoas consigam completar a graduação. “Dentro desse cenário, avalio que é importante uma atuação conjunta de todos que fazem parte desse sistema, a fim de propor soluções estratégicas que minimizem os impactos socioeconômicos na educação e a tornem cada vez mais acessível a toda a população brasileira”, completa.

 

Iniciativas das IES

No Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), de São Paulo, um programa de crédito próprio é utilizado como estratégia para evitar a evasão – por aspectos financeiros – e para abranger a matrícula para mais públicos. Segundo o professor Valdecir Jorge Aparecido Leonardo, superintendente administrativo do IMT, o crédito é concedido por meio de redução no valor da mensalidade do estudante. Valdecir explica que a restituição se dará após a formação, com um ano de carência. “Existem também concessões de bolsas não restituíveis parciais para alunos que desempenham funções de monitoria ou iniciação científica. Concedemos também bolsas aos munícipes de São Caetano do Sul, que são distribuídas por critérios socioeconômicos pela prefeitura da cidade”, conta.

A redução na mensalidade é pleiteada conforme a realidade financeira do estudante. De acordo com o superintendente, os egressos do IMT alcançam 95% de empregabilidade. “O diploma da Mauá certamente é um investimento para que prospere na carreira e, consequentemente, melhore suas condições financeiras. Por isso, a restituição do crédito inicia-se depois de um ano de formado, sem juros”, destaca o dirigente.

Na Universidade Católica de Brasília (UCB), o estudante que procura suporte da IES para dar continuidade ao curso é apresentado às possibilidades para abatimento nos valores das mensalidades e às formas de parcelamento e financiamentos estudantis, como o Pravaler e o Credies. Há ainda o PEU, uma forma de parcelamento das mensalidades da graduação presencial ou EAD ofertada pelo Grupo UBEC, mantenedor da UCB. Karen Lohanne da Silva Carvalho, analista de BackOffice da Coordenação de Relacionamento da UCB, informa que, a cada semestre, existe a oferta das bolsas disponibilizadas pelo Santander, como auxílio nos estudos, que podem variar de acordo com cada modalidade. O processo é feito por meio de inscrição e são analisados renda e índice de vida para determinar os candidatos contemplados.

 

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Os estudantes que procuram o Programa de Concessão de Benefícios (PCB) da UCB são atendidos pela assistente social do programa, que, de acordo com suas necessidades, os encaminha para a rede de apoio. “E quando possível, ofertamos bolsas de estudos ou outras formas de descontos, facilidades de pagamento, etc.”, afirma Vinícius Souza de Araújo, coordenador executivo de assistência social do Grupo UBEC. Entre o ensino presencial e a distância, cerca de 18% dos estudantes estão dentro do PCB, com descontos nas mensalidades.

A supervisora de atendimento da Coordenação de Relacionamento da UCB, Evani Silva da Nobrega Aguiar, relata que, quando o aluno solicita o cancelamento ou trancamento da matrícula por motivo financeiro, é feita análise para verificar se o discente possui algum percentual de desconto, se pode ser aumentado ou, caso ainda não tenha, se há possibilidade de ofertar algum percentual na tentativa de reverter o pedido e garantir que o estudante conclua seus estudos.

*O estudante preferiu usar um nome fictício. Confira a segunda edição da pesquisa O que os alunos realmente pensam sobre o ensino superior? na íntegra.

 

Autor

Gustavo Lima


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