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Edição 279

Falta prática didática na formação docente

Ricardo Henriques comenta aspectos relevantes da reforma do ensino médio, aborda estratégias de permanência de jovens cotistas nas IES e aponta aperfeiçoamentos na formação docente

Publicado em 01/11/2023

por Sandra Seabra Moreira

Ricardo Henriques Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco: "Além da formação sólida na área escolhida, é fundamental ter formação em práticas didáticas" (fotos: divulgação/Instituto Unibanco)

Para além dos prós e contras acerca do que prevê a lei 13.415/17, a do novo ensino médio, ou sua reforma, os números do Censo Escolar da Educação Básica 2022 apontam a urgência de mobilização da sociedade em torno da exclusão de adolescentes da escola. Entre os estudantes de 17 anos, 241.641 deixaram a escola antes de completar o ensino fundamental ou o ensino médio. Dos 14 aos 16 anos, foram 250.497.

Falta prática didática na formação docente

Ricardo Henriques: “é preciso engajar o campo subjetivo, criar empatia”

O tema da exclusão e sua relação com o racismo estrutural é abordado nesta entrevista com Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco. Ele foi Secretário Nacional de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) e atuou na coordenação da implantação do programa Bolsa Família. Henriques também comenta dois aspectos relevantes da reforma do ensino médio, a flexibilização por meio de itinerários formativos e o ensino profissionalizante. Aborda estratégias de permanência de jovens cotistas nas universidades e aponta aperfeiçoamentos na formação dos docentes – a base para uma educação de qualidade –, entre eles, a necessidade de ênfase na prática didática, para que os professores possam dar conta dos muitos desafios em sala de aula.

 

Quais são as conquistas que a reforma do ensino médio pode trazer?

 

A primeira conquista é a possibilidade de garantir que o jovem tenha ao longo da formação regular o direito tanto à trajetória propedêutica, acadêmica, como à técnico-profissionalizante, do mundo do trabalho. Uma das grandes inovações na proposta do ensino médio é garantir que no ensino regular, naquilo que é obrigatório e universal para a formação básica – as três mil horas, cinco horas por dia –, possa ter 2.100 horas dedicadas à formação básica e 900 horas para a formação técnico-profissional.

Temos de garantir para a maioria dos concluintes do ensino médio a ida para o superior ou uma embocadura para o técnico-profissional. São importantes no ensino médio os conhecimentos setoriais, interdisciplinares, que tragam as áreas de conhecimento e não só disciplinas, o que aumenta as chances de acesso à educação superior. O outro braço, que estava frágil, não estruturado, é a trajetória técnico-profissionalizante. Com isso, ao final, a maioria terá o repertório para fazer a escolha, sem que a opção pela formação técnico-profissionalizante puna a escolha posterior pelo ensino superior.

Outra conquista importante é a flexibilidade nas trajetórias, com os percursos formativos, sem que todos tenham de fazer as mesmas 15 disciplinas obrigatórias, do mesmo jeito, no Brasil inteiro. A ideia é ter uma formação básica e complementar na carga horária obrigatória. É muito positivo e mais contemporâneo poder trabalhar por áreas.

São as duas grandes conquistas.

 

A bolsa permanência e a poupança para alunos de baixa renda que estão no ensino médio, anunciadas pelo MEC e em fase de estudos, é uma medida acertada?


É muito importante, porque seguimos com as taxas de evasão e abandono muito altas. E estão presentes de forma heterogênea e desigual pelo país. Em alguns estados, essas taxas são realmente inadmissíveis. Para além do período da pandemia, há traços estruturais que fazem com que uma parcela significativa dos jovens não conclua o ensino médio. Em média, em cada 100 crianças que entram no primeiro ano do ensino fundamental, apenas 66 terminam o ensino médio. Isso na segunda década do século 21, em plena sociedade do conhecimento. Esses jovens já estão fora do jogo.

Se se fizer um recorte específico de gênero e raça, entre os meninos negros, de cada 100, apenas 53 concluem o ensino médio. Estamos dizendo que a sociedade brasileira está num acordo que aceita o fato de 47 meninos em cada 100 sequer concluírem o ensino médio, que é o mínimo para se ter inserção e autonomia numa sociedade do conhecimento.

Uma bolsa que permita a conclusão do ensino médio para jovens de alta vulnerabilidade é um componente importante para enfrentar esse traço devastador, que pressiona o abandono, a desistência.

 

Com esse dado que você citou, podemos concluir que o racismo estrutural é a base da desigualdade?


Sim, podemos. Podemos concluir mais. Nós ainda não acertamos a dívida histórica, que se arrasta por séculos, desde o processo de abolição da escravidão. São camadas que se acumulam no processo de exclusão que são, várias delas, marcadas pelo racismo. Precisamos de estratégias de ações afirmativas para lidar com esse fardo da desigualdade histórica. A política de cotas de acesso ao ensino superior, por exemplo, é importante.

 

A política de cotas está alterando o perfil dos alunos das universidades públicas?


Com certeza. Nas universidades públicas, nos últimos 20 anos, surgiu uma intelectualidade negra de alta qualidade e numa quantidade muito maior do que sempre tivemos. Parte disso, sem dúvida, está associada à política de cotas. Mas, quando observamos a permanência nas universidades, vemos que uma parcela significativa dos mais vulneráveis, entre eles negros e indígenas, entra na universidade, mas não consegue concluir, o que sinaliza que são necessárias estratégias de permanência também.

 

Quais estratégias? Bolsas, hospedagens?


A estratégia não é só financeira. Os caminhos para permanência passam por bolsa, toda a ideia de alojamento e refeição, mas também formações complementares que lidam com esse déficit histórico. Por exemplo, a formação em inglês, em línguas estrangeiras, deveria ser parte do apoio no ensino superior. Já sabemos que o acesso às universidades públicas por cotas é efetivo, mas é aquém do que poderia ser se tivéssemos desde o início os instrumentos de permanência, que são variáveis de acordo com o curso. Para acompanhar um curso de medicina, por exemplo, o custo de permanência é muito maior e deveria ter abordagens específicas para aumentar a chance de mulheres negras, dos mais pobres e vulneráveis ficarem. Os cursos altamente intensivos de ciências, nas áreas de STEM, também deveriam ter apoios complementares.

 

O Mapa do Ensino Superior, do Semesp, aponta que em uma década, de 2011 a 2021, houve aumento de 10,5% de alunos negros matriculados nas IES da rede privada. Na rede pública, o aumento foi de 9,9%. São percentuais satisfatórios?


Foi um avanço relevante se olharmos para os últimos 20 anos. Tanto em função da política de cotas quanto a de financiamento estudantil, nas faculdades privadas. No entanto, há mais instrumentos que podem ser colocados em ação por meio de políticas públicas – mais intensamente nas universidades federais e estaduais – para aumentar a presença da população mais vulnerável na universidade.

É preciso realizar as expectativas do estudante. Para isso é importante resolver o acesso e a permanência. E mais duas ações: aumentar o volume e diversificar as carreiras. Podemos aumentar o peso de jovens de famílias de alta vulnerabilidade, negros e indígenas, em cursos com alta concorrência, que têm maior probabilidade de empregabilidade e de remuneração futura.

 

O setor de TI está em alta, carecendo de profissionais e com possibilidade de gerar empregos com remunerações bastante interessantes. No entanto, cursos nessas áreas apresentam apenas 16,5% de participação feminina – quando em outras áreas elas são maioria –, e apenas 8,1% de pessoas negras, de acordo com o Mapa do Ensino Superior. Como reverter isso?


É preciso estimular a participação. Tivemos um programa no Instituto Unibanco, junto com o Fundo Elas, chamado “Elas nas exatas”, que era um instrumento para apoiar professores pesquisadores e a relação deles com a rede pública, para estimular as meninas a fazerem escolhas para as áreas de STEM. Já há mulheres negras extremamente competentes, produzindo pesquisa relevante, na área das exatas, das ciências duras. O que não tem ainda é volume.

 

Quais outros instrumentos podem estimular a entrada de mais mulheres e negros nas áreas de TI e STEM?


Além do apoio financeiro, é preciso o aumento de repertório. Desde o ensino básico, nas escolas públicas, é preciso fazer discussões sobre a relevância das ciências exatas na tecnologia, medicina, mecatrônica. E a sinalização de que é possível que jovens de alta vulnerabilidade entrem nessas profissões. É uma agenda mais intangível, que depende de sensibilização e engajamento. Não podemos esquecer que os jovens mais vulneráveis têm poucas referências familiares.

Quase nenhum dos seus conhecidos cursaram a universidade. Então, uma parte da discussão na formação básica é abrir o repertório para indicar o que significam essas profissões, pois elas sequer são conhecidas. Por exemplo, o que significa o ecodesigner? É um designer associado à questão climática, é uma profissão. Para além das profissões mais consolidadas no imaginário – medicina, direito – quais são as profissões que estão envolvendo IA? Quem é o cientista da computação? Isso precisa ser discutido no ensino médio para aumentar o repertório de escolhas, para que eles possam cursar essas formações, que para eles são ocultas ou inexistentes. É preciso difundi-las. A questão é tornar visível que existe um espectro amplo de oportunidades na formação universitária e que está disponível.

 

A maior contribuição que o ensino superior pode oferecer à escola básica é a formação de bons professores. Entretanto, segundo dados do Enade, a maioria dos cursos de licenciatura não atinge a nota 5. Os de pedagogia, em média, ficam nos 3,6. Como formar bons professores?


A formação de professores em licenciatura e pedagogia é a dimensão mais relevante, intensa e que precisa de investimentos. Além da formação sólida na área escolhida, é fundamental ter formação em práticas didáticas. Isso significa residência, experiência, prática durante a formação. A formação prática está associada à ideia do professor saber que a sua principal função está em torno de desenvolver o estudante.

O professor precisa desenvolver técnicas e metodologias que lidam com contextos específicos, heterogêneos e adversos. É preciso aumentar o peso, na formação inicial da faculdade, em práticas pedagógicas. Isso é feito em grande parte do mundo, nós fazemos pouco. Essa é a primeira questão-chave.

 

Leia: MEC anuncia a criação de uma Agência Reguladora para o ensino superior

 

A segunda é a formação inicial na gestão, para que os professores aprendam a lidar com dados pedagógicos. Por exemplo, dar feedbacks sobre notas, avaliações constantes, usar a tecnologia a seu favor. A tecnologia pode ser um instrumento aliado na personalização do ensino. É possível identificar cada estudante da turma e direcionar a aula, potencializando os que têm conhecimento naquele conteúdo, e dando conta de lidar com os que têm dificuldades. A tecnologia também permite aumentar o trabalho coletivo, fazendo com que os alunos trabalhem em grupo, que sejam autores.

 

Escolas em contextos violentos, alunos com déficits, os desafios são muitos. Mais ênfase nas práticas didáticas ao longo da formação docente pode auxiliar no encaminhamento dessas situações?


Mudar a formação básica é fundamental, na direção que já mencionei: densidade de conteúdo da área; simultaneamente, o entendimento do escopo da educação, com sociologia e filosofia da educação; aumentar o investimento em práticas pedagógicas, didáticas, em sala de aula; gestão da educação como um todo. Isso oferece repertório e instrumentos e coloca o professor muito mais em sintonia com os desafios reais dos estudantes.

O professor sabe que há violência no entorno da escola onde ele trabalha, há troca de tiros, balas perdidas, e ele improvisa, não desenvolve técnicas para lidar com isso. O professor de matemática sabe que o aluno carrega uma fragilidade desde o ensino fundamental, mas não praticou, na formação básica, modos de lidar com essas fragilidades.

É preciso engajar o campo subjetivo, criar empatia, mobilizar o jovem. É preciso estar na prática didática produzindo vínculos. O professor precisa ter altas expectativas em relação a qualquer estudante, não só por aquele que já tem uma performance adequada àquilo que se espera.

 

Leia também: Livros universitários falam pouco sobre mudanças climáticas

 

Esta entrevista com o superintendente executivo do Instituto Unibanco faz parte da edição 279 (outubro/2023) da Revista Ensino Superior. Assine.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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