Educação

Colunista

Thuinie Daros

Diretora de planejamento acadêmico na Vitru Educação

Presencialidade é sinônimo de prática?

Tema deve ser analisado para desvendar se é, de fato, a presencialidade que catalisa a vivência prática

Presencialidade é sinônimo de prática? Prática, enquanto ação, transcende a simples presença em sala de aula (foto: Freepik)

Estamos testemunhando movimentos governamentais que visam o aumento da presencialidade em cursos do ensino  a distância (EAD). Essa possibilidade não é aleatória. Ao que parece, uma premissa pautada na compreensão de que ao aumentar a presencialidade, consequentemente, garantirá maior vivência de atividades práticas durante o percurso formativo dos estudantes da educação superior. Entretanto, é fundamental indagar: será que a presencialidade por si só assegura uma experiência prática valiosa?

Não se pode negar que a prática educativa presencial oferece uma riqueza de experiências, permitindo aos estudantes que desenvolvam as competências para serem capazes de enfrentar desafios reais ao exercer uma profissão. Contudo, este é um tema que merece uma análise e debates mais profundos para desvendar se é, de fato, a presencialidade que catalisa a vivência prática ou se há outros fatores em jogo como uma identidade pedagógica, fortemente marcada pela intencionalidade educativa enfocada na aprendizagem dos estudantes. 

A meu ver, para se explorar adequadamente a compreensão de prática na educação superior, precisamos ir além da noção convencional da associação com a presencialidade. Este entendimento se aprofunda ao analisarmos as teorias de educadores como Selma Garrido Pimenta, Paulo Freire e José Carlos Libâneo. Eles nos oferecem uma visão holística, onde a prática é percebida como um conjunto integrado de ações, reflexões, transformações, relações e processos formativos.

Para entender melhor o que constitui a prática na educação superior, considerei cinco aspectos-chave que ajudam a definir e caracterizar esta dimensão importante da aprendizagem:

 

  1. A prática como ação

 

A prática pode ser entendida como uma ação, um fazer. É o que os estudantes e professores fazem no dia a dia das universidades e nos ambientes profissionais. Isso inclui atividades como participar das aulas, realizar discussões, elaborar trabalhos acadêmicos, desenvolver projetos de pesquisa, extensão, estágios etc. Não é apenas sobre “absorver” informações passivamente, mas sim sobre a aplicação ativa do conhecimento. Isso acontece quando estudantes e professores interagem de maneira prática no ambiente universitário. Aqui, a prática se manifesta quando os estudantes se envolvem ativamente nas aulas, fazendo perguntas, participando de discussões em grupo e aplicando teorias em exercícios práticos.

Para elaboração de trabalhos acadêmicos, por exemplo, se pratica o conhecimento, por meio do processo de pesquisa, análise e em especial quando estes comandos são aplicados no que foi aprendido para explorar novas ideias ou resolver problemas específicos.

A prática, enquanto ação, transcende a simples presença em sala de aula. Ela envolve uma participação ativa do estudante no processo de aprendizagem, que pode ocorrer tanto em ambientes físicos quanto virtuais. Projetos colaborativos online, experimentos em laboratórios virtuais e estudos de campo que podem ser tanto presenciais quanto mediados por tecnologia.

Problemas reais não se resolvem apenas com teoria e a prática como ação, é essencial na formação profissional dos estudantes da educação superior. 

 

  1. A prática como reflexão

 

A prática também pode ser entendida como uma reflexão sobre a ação. É o que os estudantes e professores pensam sobre o que fazem, buscando compreender as implicações e impactos de suas intervenções. Isso inclui atividades como participar de seminários e debates, escrita de textos reflexivos e dialógicos.  Durante seminários, por exemplo, os estudantes podem realizar presencialmente ou por meio de plataformas digitais o compartilhamento de insights, construção de ideias, posicionamentos fundamentados cientificamente. Inclusive, vale o registro de que a interação entre momentos presenciais e on-line podem ser potencializados e estimular uma reflexão mais profunda, incentivando a análise crítica.

 

  1. A prática como transformação

 

A prática pode ser entendida como uma transformação. É o que os estudantes fazem para mudar e melhorar o mundo. A prática educativa como transformação transcende os limites do ambiente acadêmico. Aqui, estudantes e professores tornam-se agentes de mudança, utilizando o conhecimento adquirido para impactar positivamente a sociedade.

Esta abordagem enriquece a experiência educacional e contribui significativamente para a formação de profissionais conscientes e comprometidos com as questões sociais e bem-estar coletivo visto que nesta dimensão ela promove o pensamento crítico e prepara os futuros profissionais para além do exercício da prática laboral, na contribuição ativa para uma sociedade mais justa e igualitária.

 

  1. A prática como relação

 

A prática também pode ser entendida como o exercício de uma esfera relacional, no qual estudantes e professores interagem entre si, com conhecimentos científicos e com o mundo. Essa interação acontece por meio de diálogos, debates e colaborações, tanto em ambientes presenciais quanto telepresenciais. Estabelecer relacionamentos na prática educativa relacional, perpassa o estabelecimento de vínculos, aceitação e exercício das singularidades e no acolhimento entre professores, pesquisadores, estudantes e comunidade, abrindo-se para diferentes perspectivas e contribuindo para a construção coletiva do conhecimento. Esta abordagem relacional enfatiza a importância da comunicação e da colaboração na aprendizagem, reconhecendo que o conhecimento é uma construção social, enriquecida pela diversidade de ideias e experiências.

A aprendizagem online, neste contexto, oferece uma oportunidade única para interação global. Plataformas digitais permitem que estudantes de diferentes culturas e geografias colaborem, criando uma experiência educacional diversificada que muitas vezes ultrapassa as possibilidades do ambiente presencial tradicional.

 

  1. A prática como processo de formação 

 

A prática como processo formativo, trata-se das experiências das quais os estudantes e professores aprendem ao fazer. Isso inclui o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e valores para construção de uma identidade profissional robusta. 

Em cursos da área da saúde, por exemplo, tem sido recorrente a aplicação de metodologias de aprendizagem imersivas: uma delas é a utilização de simulações realistas com manequins de alta fidelidade e softwares avançados. Essas simulações são projetadas para recriar emergências médicas, proporcionando aos estudantes uma experiência prática quase real. Essa abordagem permite que eles desenvolvam habilidades como tomar decisões rápidas e eficazes em momentos críticos, além de fomentar o trabalho em equipe, aspecto crucial nesta área. 

 

Opinião: O valor da presencialidade na formação superior

 

Considerando o mesmo exemplo, mas ampliando para a modalidade de educação a distância, a prática como processo formativo, se flexibiliza ao ambiente online, mantendo o caráter interativo e colaborativo. Tomemos como exemplo os cursos de Enfermagem, onde o uso de realidade virtual, jogos de escape room, microscopia digital e games imersivos têm transformado a maneira de aprender. Essas ferramentas interativas simulam cenários reais da profissão, desafiando os estudantes a aplicarem os conceitos teóricos em situações práticas. Por meio de projetos de grupo, estudos de caso e simulações, os alunos vivenciam a aplicação direta da teoria em contextos profissionais, enriquecendo sua formação e preparação para o mundo do trabalho.

Destaco que isso só é possível devido aos avanços tecnológicos que impactam positivamente no papel fundamental na reformulação do paradigma educacional vigente. De acordo com o relatório Horizon Report: Teaching and Learning Edition”, daEducause de 2022, mais de 70% das instituições de ensino superior já incorporaram tecnologias como realidade virtual e aumentada em seus currículos. Isso reflete um compromisso crescente com a inovação na educação, buscando metodologias de aprendizagemque não apenas transmitem conhecimento, mas também engajam os estudantes em um processo de aprendizagem ativo e imersivo.

A educação atual, e próximos anos, transcendem os modelos tradicionais cuja divisão entre modalidades e espaços físicos, podem cada vez mais se mesclar e configurar-se como uma rica tapeçaria de experiências, aprendizados e interações que ocorrem em múltiplos contextos por meio de modelagens pedagógicas cada vez mais ricas. Neste cenário, a educação superior, independentemente de sua modalidade, está se tornando cada vez mais híbrida. 

 

Opinião: Por que temos de ressignificar a universidade

 

Uma evidência da intensificação do hibridismo como principal modelagem educacional, é que, atualmente, podemos ofertar até 40% da carga horária dos currículos dos cursos presenciais e até 30% da carga horária presencial do currículo de cursos à distância. Importante destacar que as diretrizes curriculares para cada curso não diferem quanto à modalidade. Essa possibilidade regulamentada indica que as abordagens híbridas, asseguram a integração de tecnologias educacionais e práticas pedagógicas inovadoras, mas também intensifica a intencionalidade e a eficácia da educação.

A intensa vivência de atividades práticas na formação dos estudantes é um ponto indiscutível e deve sim passar cada vez mais por um olhar criterioso com evidências robustas das experiências de aprendizagem dos estudantes, mas como podemos perceber, a concepção de prática na educação superior é multifacetada e vai além da presencialidade. Requer engajamento ativo, reflexão crítica, capacidade de transformar e se relacionar, e um processo contínuo de formação e isso pode ser feito de forma on-line, mediada por tecnologias e de forma presencial. 

Convido você a fazer parte desta conversa vital e a buscar, junto aos seus pares, aprofundar este debate. E então, será que podemos ainda considerar a presencialidade como sinônimo de prática?

 

Referências

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos: inquietações e buscas. São Paulo: Cortez, 2005.

PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da docência. São Paulo: Cortez, 2009.

https://library.educause.edu/resources/2022/4/2022-educause-horizon-report-teaching-and-learning-edition

 

Por: Thuinie Daros | 22/01/2024


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