NOTÍCIA
Jurista, feminista e professora de direito da PUC SP, Silvia Pimentel aborda a violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de ambientes mais saudáveis para as mulheres nas universidades
Publicado em 01/11/2024
“Estudem! Leiam muito mais do que estão lendo hoje e leiam além de sua área de estudo específica. Não só livros acadêmicos; leiam literatura, leiam poesia. De ontem. De hoje. Do mundo. Do Brasil. Procurem se preparar para um amanhã altamente tecnológico, sem perder a sensibilidade e a ternura em seus relacionamentos humanos. Desejo que possam conciliar a fluidez pós-moderna com amores sólidos e afetos solidários.”
As palavras são parte da fala da jurista, feminista, professora universitária com cinquenta anos de carreira e ativista pelos direitos humanos Silvia Pimentel, ao ser homenageada como Personalidade Acadêmica na primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico, em agosto deste ano.
Mineira de Belo Horizonte, 84 anos, tem quatro filhos, sete netos, e ao conceder entrevista aguardava a chegada do bisneto, Martin, para o almoço. Viúva, foi casada por 35 anos com o médico Fernando Proença, “um grande companheiro feminista”, fato raro, ela reconhece, num país em que a cultura patriarcal é tão arraigada.
É graduada em direito, com especialização em psicologia da educação e doutorado em filosofia do direito, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “a mais democrática das PUCs”, pontua. É na mesma universidade que atua como professora de filosofia do direito e da disciplina optativa de direito, gênero e igualdade. Também é vice-coordenadora do Núcleo de Direito Constitucional da Pós-Graduação, coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade e da Clínica de Direitos Humanos da PUC-SP Maria Augusta Thomaz.
Foi integrante do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, da Organização das Nações Unidas (CEDAW/ONU) de 2005 a 2016, e sua presidente no biênio 2011/2012. É membro do Conselho Consultivo do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direi- tos das Mulheres (CLADEM).
Silvia Pimentel tornou-se feminista influenciada sobretudo por mulheres que estiveram fora do país nos anos mais duros da ditadura militar e, ao retornarem, articularam-se em torno da redemocratização do país. Silvia elaborou, com a feminista Florisa Verucci (1934-2000), o Novo Estatuto Civil da Mulher, proposta de lei encaminhada ao Congresso Nacional em 1981 e que, posteriormente, passou a compor o Novo Código Civil, de 2002. Também foi uma das autoras da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, de 1986, e protagonizou, como participante ativa do Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a Todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres, a elaboração do anteprojeto de lei que resultou na Lei nº 11.340, de 2006, Lei Maria da Penha. Em 2005, foi uma das 1000 Mulheres (2005) indicadas para o Prêmio Nobel da Paz.
Nesta entrevista realizada de maneira remota, rapidamente, a personalidade histórica, com livros publicados, palestras proferidas, encontros organizados, alunos orientados, se coloca na postura ativista. Há muito o que fazer. O tema dos direitos reprodutivos das mulheres, “tão delicado a todas as mulheres e tão rechaçado por conservadores”, é incontornável às feministas diante do retrocesso que representou o PL 1904/24, que propõe alterar o Código Penal para equiparar a interrupção da gravidez após 22 semanas a crime de homicídio simples, protocolado em regime de urgência em maio deste ano. Houve grande reação contrária da sociedade civil.
O projeto de lei ganha contornos ainda mais perniciosos diante de dados acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes apontados no Anuá- rio Brasileiro de Segurança Pública de 2023: o estupro é o tipo de crime com maior número de registros contra crianças e adolescentes do Brasil. Em 2022 foram quase 41 mil vítimas de 0 a 13 anos, das quais quase 7 mil tinham entre 0 e 4 anos, mais de 11 mil, entre 5 e 9 anos, mais de 22 mil entre 10 e 13 anos e mais de 11 mil entre 14 e 17 anos.
“Não é o direito penal que vai resolver essa situação, é a educação”, afirma Silvia Pimentel.
Outro tema abordado nesta entrevista é a busca pela construção de ambientes menos opressores e mais saudáveis nas universidades, não só para mulheres mas para todos os grupos historicamente discriminados.
Um dos temas que de fato me angustiam é o abuso sexual de meninas – de meninos também ocorre, mas é em proporção menor – nas próprias casas. Muitas vezes são pais, padrastos, tios, avós, vizinhos. Essa é uma mazela brasileira perversa. É difícil mensurar o que vai significar isso no desenvolvimento da criança, no projeto de vida que ela vai construir. Muitas vezes, elas, de fato, engravidam com dez, onze anos; acontece em toda a América Latina.
Lembro o caso ocorrido no Espírito Santo, em que uma menina foi estuprada pelo tio desde os seis anos e engravidou aos dez. Houve muita dificuldade para o aborto legal, possibilidade que nós temos no Brasil desde o Código Penal de 1940. Por isso dizemos “crianças não são mães”, crianças têm de brincar. Nenhum dos três Poderes, no Brasil, está encarando esses fatos com seriedade, especialmente os Poderes Executivo e Legislativo.
O Código Penal Brasileiro, de 1940, estabelece no artigo 128 duas situações em que o aborto não é crime – no caso da gravidez que está provocando risco de morte para a mãe e casos de estupro. E agora, o questionamento vem neste momento de retrocesso que o Brasil está vivendo, muito especialmente desde 2018, que ocorre de forma articulada com os retrocessos do mundo; há uma articulação da ultradireita.
Inclusive, em relação a gestações que chegam a 22 semanas, a resposta é absurdamente inadequada e não está estabelecida no Código Penal. É claro que não quero que nenhuma gravidez tenha de ser interrompida na 22ª semana, ninguém quer. Recentemente, discuti com um colega da Opus Dei e disse “queria que você colocasse esse esforço em outro ponto. Não é o direito penal que vai resolver essa situação, é a educação”.
São necessárias condições efetivas de uma interferência positiva na família para que isso não ocorra, e, se não for possível, que haja um lugar para essas crianças sobreviverem sem ameaças sexuais. São necessárias campanhas para prover a mudança de mentalidade, no âmbito da educação e da cultura, em diálogo. Não é uma campanha, são anos de campanha, anos de educação dos professores.
O Poder Executivo precisa focar a atenção na educação. Precisamos de educação sexual e de gênero nas escolas, isso é muito importante. Inclusive, começando pelos professores, porque quando as crianças são muito pequenas não serão elas que terão educação sexual, mas os professores precisam de preparo. Não estou trabalhando com ideologia, mas com conhecimento. Não se deve apavorar com a hipótese de que nós, educadores, estejamos fazendo uma confusão na cabeça das crianças. Ninguém quer fazer confusão; queremos protegê-las. De que maneira? Enquanto são crianças é efetivamente criando condições de os professores conhecerem essa realidade.
Há estudos fáticos, estão mensurados. Esses estudos existem, os professores conhecem, e são a grande esperança de encaminhamentos possíveis. Eles precisam ter sensibilidade para essa criança que chega mais triste, olhar diferenciado, passa a não interagir com seus coleguinhas.
Estudei a fundo cinquenta processos, um estudo qualitativo, aprofundado, e é muito triste saber qual é a estratégia dos homens com essas crianças. Alguns ameaçam, “se você contar para a mamãe, eu vou matar a mamãe”, então a criança fica verdadeiramente apavorada. Ela fica assustada.
O professor tem de estar preparado, porque é um fato que ninguém refuta. Ninguém refuta as pesquisas que apresentam esses dados. Se não refutam, se os dados são perversos –insisto nessa palavra, perversidade –, cabe a quem? Quais são as estratégias para superação? Uma delas é por meio das estruturas da educação e da cultura, entrelaçadas.
Não vejo ainda uma articulação de todas as feministas. É um tema delicadíssimo, que separa, que impossibilita que mulheres se elejam, por isso não é trazido. Mas veja, nos EUA, a Kamala Harris talvez se eleja por causa disso. Não porque o tema seja mais aceito, mas desde 1973 houve uma decisão, pela Suprema Corte, de que os estados não poderiam proibir o aborto [em 2022, essa decisão foi derrubada]. Quando Harris ficou no lugar de Joe Biden como candidata à presidência, no primeiro discurso, fugindo totalmente do que se faz aqui no Brasil, colocou como uma das três grandes bandeiras a retomada daquilo que existia desde 1973 e foi proibido em 2022.
Mas estamos atentas. Jaqueline Pitangui, a feminista que puxou a campanha A constituinte para valer tem palavra de mulher, fundou um grupo do qual faço parte. Escrevemos juntas a carta que foi entregue à Câmara dos Deputados na semana passada [em repúdio ao PL 1904/24, assinada por 18 integrantes do grupo, entre eles, Eva Blay, Sueli Carneiro e Kenarik Boujikian].
Há cerca de dez anos, fui procurada por algumas feministas que relataram casos de abuso sexual na universidade. Eu disse: é um caso grave, vocês têm direito de fazer um BO, porque é um caso criminal, têm o direito de irem aos jornais, fazer um esparramo, mas vejo que meu papel, como professora – à época, há quatro dé-cadas, agora há cinco –, é verificar uma forma construtiva de resolver. Propus uma reunião com o diretor da faculdade de direito. Em vez do diretor, quem nos atendeu foi o vice-diretor, Vidal Serrano – recém-eleito reitor, assumirá em 2025, ao lado da vice-reitora Carla Longhi.
O grupo de pesquisa foi criado, assim como a disciplina optativa de direito, gênero e igualdade. Propus também a criação das Diretrizes sobre Assédio Moral, Sexual, Discriminação e Desigualdade da PUC-SP – que foram aprovadas pelo conselho universitário, e depois incorporadas ao novo estatuto da universidade.
Foi bonito, mas já vai fazer dez anos. Adiantou alguma coisa? Pouco. Teve pouca eficácia porque as diretrizes estão no plano da normatização. Está faltando o plano da criação de mecanismos para que efetivamente obtenha resultados mais palpáveis.
Sim. Nas próximas semanas montaremos o grupo para ouvir a universidade de uma forma participativa e colher depoimentos de alunos e alunas, inclusive os que são desrespeitados, porque tem assédio moral também. Nossos estudantes ‘prounistas’ são desrespeitados. Foi o professor Vidal quem sugeriu que trabalhássemos também com o assédio moral, por causa dos nossos estudantes pobres. Agora haverá concretude; vamos criar mecanismos, instrumentos, órgãos, pessoas que vão cuidar desses casos.
O feminismo interseccional. Não faz sentido não abraçar, e é preciso ler para trazer luzes às nossas ações [veja lista de recomendações ao final do texto].
Essa história de falar “feminismo branco”, aqui no Brasil, não pega muito. Para nós, o feminismo teve o seu início exatamente na época da ditadura, quando, em 1975, voltaram pessoas exiladas, inclusive várias mulheres, e trouxeram experiências lá de fora, como as do feminismo francês. Não podemos dizer que Berta Lutz, por exemplo, não era feminista, mas falo aqui do feminismo articulado. Cresceu juntamente com as mulheres do PCB, PC do B e MR-8, junto com mulheres de partidos políticos de esquerda não comunistas. Estávamos de forma conjunta lutando contra a ditadura, próximas aos sindicatos e de todos aqueles que queriam se organizar para apontar a importância de uma reconstrução democrática no nosso país.
Havia tensões porque muitas dessas mulheres, as comunistas desses três partidos, diziam “é burguês falar de prazer. É burguês falar de nossos direitos dentro de casa, nós temos de primeiro acabar com a ditadura, conseguir o socialismo e depois, na base da igualdade de todos, vocês trarão suas propostas”. Então, esses movimentos se diversificaram. Como agora, que está na moda chamar de “identitarismo”, palavra que virou xingamento, para então dizer que nós estamos atrapalhando o fulcro da luta contra o capitalismo.
Quero dizer que nós, mulheres feministas brasileiras, de raiz histórica, desse movimento de reconstrução democrática, trabalhamos numa perspectiva interseccional, que é democrática, cuidando dos temas classe, raça, e agora fomos aos poucos verificando a importância de outros temas. Por exemplo, o das pessoas com deficiência. Recentemente, no depoimento concedido ao podcast do Fonavid – Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – abordei pela primeira vez a questão numa perspectiva interseccional, relatando o caso da minha irmã com deficiência mental.
Documentário sobre mapeamento da violência de gênero na universidade, pesquisa realizada por estudantes do curso de direito da PUC SP, na disciplina extensionista Feminismo na Prática, sob coordenação da professora Gabriela Shizue Soares de Araújo, com apoio da TV PUC