NOTÍCIA
Melhorar o acesso ao ensino superior não será tarefa fácil. Saúde, em especial medicina, parece ser a única área em que muitos veem caminhos abertos
Publicado em 29/04/2025
Desde julho de 2024, o Plano Nacional de Educação, promulgado no governo Dilma Rousseff (PT) em junho de 2014, ganhou uma sobrevida, com sua vigência prorrogada até 31 de dezembro deste ano. Talvez alguém pudesse pensar que os acréscimos se destinassem ao cumprimento das metas que ficaram a descoberto depois do tempo regulamentar. Porém, o ajuste no cronômetro serve menos ao intuito de marcar o gol redentor que à possibilidade de preparar o campo para a próxima partida, a saber, o Plano Nacional de Educação 2024-2034.
Se os termos parecem confusos como as regras dos campeonatos brasileiros de futebol, isso pouco tem a ver com o acaso. O país é o mesmo, os dirigentes/legisladores comungam das mesmas raízes culturais e a barafunda é comum, misturando megalomaníacos com heroicos sobreviventes. Para que o jogo continue e possa haver renovação de esperanças, é preciso saber de onde vem o dinheiro.
Distinguida com a meta 12 do PNE 2014-2024, a expansão desta etapa educacional passou por uma mudança de perspectiva. Por diversos motivos, a meta e suas três submetas ficaram longe do objetivo final. Assim, as ousadas propostas de alcançarmos 50% de taxa bruta de matrículas (chegamos a 40,5%) e 33% de taxa líquida (20,9%) para a população entre 18 e 24 anos foram reformadas.
Na proposta para o decênio 2024-2034 (que deverá ser 2026-2034), o objetivo para a educação superior ganhou a seguinte redação: “Ampliar o acesso, a permanência e a conclusão na graduação, com redução de desigualdades e inclusão”. Para concretizá-lo, as metas a serem atingidas são a 13a – elevar o percentual da população de 18 a 24 anos com acesso à graduação para 40%, de modo a reduzir as desigualdades entre os diversos grupos sociais; e a meta 13b – elevar o percentual da população de 25 a 34 anos com educação superior completa para 40%, com vistas a reduzir as desigualdades entre os diversos grupos sociais.
Das 13 estratégias listadas, uma faz referência direta a “ampliar a ocupação dos benefícios concedidos” por ProUni e Fies. As outras mencionam outras ações governamentais como “estimular a expansão de instituições de educação superior estaduais e municipais, cujo ensino seja gratuito”. Trocando em miúdos, a preocupação do plano é com a oferta pública para a educação superior.
Nessa direção, o programa Pé-de-Meia, que estimula a permanência no ensino médio por meio de uma poupança para o estudante, representa uma esperança de aumento de concluintes com possibilidades de irem à universidade. Em especial após a ampliação do benefício para aqueles provenientes do CadÚnico e da EJA (Educação de Jovens e Adultos), chegando a um total de 3,9 milhões de pessoas, segundo números do Ministério da Educação.
A questão aqui é a falta de histórico do programa, o que não permite projetar com base em dados quantos desses alunos podem, potencialmente, chegar ao terceiro grau. Mas, sem dúvida, é uma política positiva, pois cursar o ensino médio também precisa ter valor formativo, não apenas como etapa intermediária.
Alexandre Mori, do Semesp: por um Fies mais inclusivo (foto: divulgação)
O financiamento estudantil governamental, o Fies, terá em 2025 em torno de 1/7 do total de contratos novos assinados em 2014. Naquele ano, foram 732 mil, contra 112 mil vagas abertas para 2025.
“Em 2024, foram 21,8 mil contratos novos, a menor taxa da história. Hoje, não chegamos a 400 mil contratos ativos. Já chegamos a ter 2 milhões”, diz Alexandre Mori, gerente de Financiamentos do Semesp. Na sua visão, as condições atuais para pleitear o financiamento são excludentes. Algumas das condições que ele assim qualifica foram estabelecidas no final de 2014, quando o governo apertou o freio para o programa. Desde então, é necessário fazer no mínimo 450 pontos no Enem, sem zerar a redação. Além disso, o limite de renda é de três salários mínimos por pessoa, enquanto antes eram 20 mínimos por família. E as inscrições podiam ser feitas a qualquer momento do ano, hoje são apenas duas aberturas, no início dos semestres.
As medidas foram uma resposta ao temor de um rombo financeiro pela falta de pagamentos, problema que ficaria notório nos anos posteriores, com a crise do biênio 2015-2016 e, posteriormente, com a pandemia. Para combatê-lo, o governo limitou o crédito, de olho no tamanho do rombo.
Atualmente em tramitação na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, um projeto apresentado em 2004 pelo então senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG) voltou a ser cogitado após parecer favorável da deputada Adriana Ventura (Novo/SP), membro da Frente Parlamentar pela Inclusão e Qualidade na Educação Particular. O PL 3.961/2004 permite que os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) sejam utilizados para o pagamento de mensalidades do Fies ou de mensalidades escolares dos filhos dos beneficiários.
De acordo com a deputada, “o Fies foi concebido como um motor de transformação social, mas muitos jovens têm enfrentado desafios financeiros que comprometem seu futuro. Este projeto de lei oferece uma alternativa concreta para reduzir a inadimplência e assegurar que esses estudantes possam se dedicar ao mercado de trabalho sem o peso das dívidas”.
No entanto, sua aprovação deve enfrentar resistências, já que, historicamente, mexer com o FGTS não é tarefa fácil. O sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE, acredita que esta não é uma boa alternativa. “O fundo foi concebido com outra finalidade; desviar sua função pode atrapalhar o beneficiário no futuro, pois esse dinheiro é uma poupança compulsória que irá ajudá-lo num mundo em que o trabalho é muito instável.”
Para o sociólogo Simon Schwartzman, um ensino médio de qualidade ajudará a expansão do ensino superior (foto: Pedro Carrilho/Folhapress, 1589, PODER)
Outra sugestão é a que cria a contribuição em restituição ao financiamento estudantil, “espécie de tributo que poderá ser instituído por lei específica e destinada a viabilizar sistemas de financiamento com pagamentos vinculados à renda futura”, como propõe, a partir de estudos realizados pelo pesquisador Paulo Nascimento, do Ipea, um grupo de parlamentares de vários partidos. Trata-se da proposta de emenda à Constituição de número 24, de 2023.
No geral, a proposta é vista com bons olhos por vários estudiosos em função de basear-se na bem-sucedida experiência australiana. Nesse modelo, o estudante só começa a pagar depois de formado e estando empregado. Aí um percentual de sua renda é destinado à restituição do financiamento. Difere, assim, do modelo norte-americano, ressalta Schwartzman, em que o ex-estudante é obrigado a realizar desembolsos estando ou não empregado.
Para o sociólogo, no entanto, a expansão do ensino superior não pode ser desatrelada de uma melhor performance da etapa anterior. “O que nos limita é o baixo número de formados no ensino médio, ainda por cima sem condições adequadas. Se tivermos um ensino médio de qualidade, isso já ajudará em muito a expansão do superior”, diz o estudioso.
Hoje, as reivindicações do setor privado para o Fies são de que ele volte a ficar aberto o ano todo, que o teto do financiamento aumente e que haja a possibilidade de estabelecer o crédito para o semestre seguinte sem que o aluno perca aulas no período de análise da concessão.
Diogo Borges, da Principia: mercado com potencial de crescer até três vezes (foto: arquivo pessoal)
Se é difícil vislumbrar maior abertura do financiamento público no atual cenário econômico, há a busca por novas possibilidades para que o financiamento estudantil ajude a aumentar o acesso. Diogo Borges, sócio e diretor de Operações da Principia, instituição que financia cursos de pós-graduação, tecnólogos e livres, o Brasil tem potencial para ter até três vezes mais estudantes na educação superior do que tem hoje.
“O financiamento é a melhor alavanca para isso. O problema do Fies, quando houve a expansão, é que a política de crédito não era bem desenhada. E um produto de crédito só para em pé quando se paga de volta”, raciocina Borges. Para o executivo, ex-sócio da Pravaler, empresa líder no segmento, hoje está mais fácil trabalhar com projeção de riscos a partir dos mecanismos oferecidos pelas fintechs.
E o potencial de crescimento que ele menciona está diretamente ligado a uma parcela da população que, num primeiro olhar, talvez não fosse alvo preferencial. São os mais de 40% dos brasileiros adultos que estão negativados, com dívidas que giram em torno de R$ 5 mil. São dívidas de cartão de crédito, prestação de veículos etc. “Quando o aluno começa a se endividar, a tendência é evadir. Por isso, a cobrança é importante, para ajudá-lo a não deixar a dívida crescer. As fintechs desenham bem o perfil do aluno”, diz Borges. Quem atende essa população negativada consegue aumentar a renda dessas pessoas, que são os que precisam do financiamento.
Outra saída que também começa a ganhar mais corpo, segundo Alexandre Mori, é a criação de sistemas próprios das faculdades. Ele calcula que mais de 5% dos ingressantes já utilizam financiamentos do gênero. “O problema é a cobrança, pois muitas instituições não têm expertise”, alerta. Mas há quem tenha investido inclusive na constituição de sistema de cobrança próprio*.
Beto Dantas, da Pravaler: captação de recursos de R$ 825 milhões em 2024 (foto: divulgação)
Como em outros ramos, a análise de crédito bem feita é fundamental para a satisfação de todas as partes envolvidas na operação. A Pravaler, hoje com 120 mil alunos ativos, detentora, segundo ela, de 85% dos financiamentos privados no país, também aposta na análise de crédito. “Dar o crédito errado faz mal para o aluno. Nossa responsabilidade ao dar o crédito vai além do interesse de ter o dinheiro de volta. Por isso, nosso índice de perda (PDD, provisão para devedores duvidosos) é baixo, em torno de 5%”, diz Beto Dantas, diretor de Operações da empresa.
A aposta da Pravaler no segmento é grande. Em 2024 a empresa captou R$ 825 milhões no mercado, atingindo com isso um investimento total de R$ 10 bilhões em educação desde a sua fundação em 2002, diz o diretor. Presente em todas as regiões do país, tem parceria com 500 instituições de ensino superior.
E, assim como elas, está olhando para o principal “filão” do mercado estudantil neste momento: os vários cursos de medicina que conseguiram autorização para começar a funcionar ou expandir suas vagas no ano passado, a partir de decisão judicial. A medicina é, entre todos, o curso mais caro do mercado, custando em torno de R$ 12 mil. Como explica Dantas, com o financiamento o aluno paga metade da mensalidade no dobro do tempo, com juros que variam de 0,59% a 0,99% ao mês.
E não é só a medicina que está entre os cursos mais procurados pelos estudantes que buscam financiamento: dos sete cursos com maior número de contratos, seis são da área da saúde. A exceção é o curso de direito, também muito procurado.
Bons indicadores da educação básica no Nordeste fazem crescer a demanda por crédito estudantil na região, segundo Alessandro Lomeyer, da Fundacred (foto: divulgação)
A Fundacred é uma instituição sem fins lucrativos que está no mercado desde a década de 1970. Se inicialmente a projeção de crescimento para este ano era de 10%, os resultados de janeiro e fevereiro estão bem maiores, na casa dos 30% em relação ao mesmo período do ano passado. Nascida na região Sul do Brasil, hoje está mais bem distribuída: mantém 40% de seus contratos na região de origem, outros 20% no Sudeste, 30% no Nordeste e 10% no Norte.
Alessandro Lomeyer, vice-presidente de Operações da Fundacred, destaca o crescimento no Nordeste após a pandemia. Vários estados da região trazem bons indicadores na educação básica e, segundo o dirigente, havia carência de oferta para o crédito estudantil.
Assim como a Pravaler, a captação de novos estudantes está no horizonte. Para isso, a Fundacred estabelece primeiro um convênio com a IES parceira e, a partir daí, busca não só a captação como também a fidelização, identificando riscos de evasão e, finalmente, faz a recuperação de evadidos. “Temos como diferencial a disposição de entender a situação das duas partes”, diz Lomeyer ao ressaltar o desenho de ofertas para tornar viável a oferta de crédito levando em conta as causas da evasão.
Durante o planejamento estratégico de 2006, os dirigentes da FHO (Fundação Hermínio Ometto), mantenedora do Centro Universitário FHO, em Araras, interior de São Paulo, vislumbraram um caminho inovador para a captação de novos alunos. Ao comparar os números do financiamento estudantil nos Estados Unidos e no Brasil, perceberam que ali poderia haver uma oportunidade.
“Não dava para abaixar a mensalidade. Ao mesmo tempo, os alunos precisavam de apoio pedagógico para sanar as lacunas que traziam do ensino médio. E precisavam também de auxílio financeiro”, relembra Francisco Sanches, diretor administrativo-financeiro da FHO.
Numa época em que a oferta de ensino superior havia crescido muito, era necessário estabelecer um diferencial e, ao mesmo tempo, manter-se fiel aos propósitos institucionais de oferta de cursos acessíveis e de qualidade.
Francisco Sanches relata que na FHO o financiamento próprio dobrou o número de alunos (foto: divulgação)
Num primeiro momento, tentaram fazer parcerias com instituições bancárias, mas elas não deram certo em função da não coincidência de objetivos. Os bancos, afinal, são recompensados com os juros sobre a quantia adiantada. Já para a FHO, o retorno visado era o aumento do acesso.
“Em 2008, implantamos o Pague Fácil. De 2009 a 2019, dobramos o número de matriculados na instituição, de 5 mil para 10 mil alunos. Enquanto isso, outras faculdades da região registraram diminuição de alunos”, diz Sanches.
Além do crescimento, o crédito estudantil foi desenhado de forma a minimizar a evasão, que trouxe índices comparáveis aos de universidades públicas. Para chegar ao formato, a FHO estudou o perfil dos alunos que precisariam de crédito para ter acesso aos 23 cursos oferecidos pela instituição. Muitos desses candidatos necessitavam preencher as já mencionadas lacunas estudantis trazidas do ensino médio; teriam de arcar com os custos de transporte entre Araras e as suas cidades. Muitos dos alunos postulantes vinham das várias cidades que estão num raio de mais ou menos 40 km de Araras.
Um fator de atração foi o fato de o aluno não ser submetido à aprovação de cadastro. Bastava apresentar um corresponsável pelos pagamentos, que também não teria de fazer aprovação cadastral, processo que ainda se mantém igual. A adesão pode ser feita em qualquer momento do curso. Não há cobrança de juros, apenas os valores de atualização das mensalidades.
Como em muitos programas de crédito, o estudante começa a pagar o valor financiado após a conclusão do curso. Porém, no programa da FHO ele paga 50% da mensalidade durante o curso e financia os outros 50%, pagáveis após a obtenção do diploma. Nos últimos anos houve apenas uma mudança. Como os cursos variam entre 4 e 6 anos, os alunos podiam pagar no prazo de 8 a 12 anos (contando os anos cursados). Agora, esse tempo foi reduzido em um ano, ou seja, de 7 a 11 anos.
Segundo Sanches, um dos fatores de sucesso para implantar o financiamento é a instituição ter um sistema de cobrança eficiente, terceirizado ou próprio. No caso da FHO, tanto a cobrança administrativa como a judicial são próprias. Esta segunda, diz ele, visa muito mais a obtenção de acordos com quem tem valores pendentes. “Nossa projeção de perda final está na casa dos 4%, número bastante baixo. Hoje em dia, os valores que estamos recebendo de quem se formou estão ajudando a aliviar o caixa. É como se tivéssemos feito uma poupança forçada.”