O cuidado é também um gesto institucional
"Quando o estudante reconecta corpo e mente, aprende não apenas conteúdos, mas modos de estar no mundo" (imagem: Shutterstock)
Passei grande parte de minha vida estudando a atenção como função neuropsicológica, focando nela meus estudos de mestrado e doutorado no Programa de Ciências Médicas da Unicamp. Foram anos de grande aprendizado e o foco eram as dificuldades de aprendizagem que crianças apresentavam durante a escolarização. Com o tempo meu interesse passou a ser, essas mesmas dificuldades, manifestadas em estudantes adultos especificamente no período da universidade. Vejo hoje, que há vários equívocos em relação à temática: excesso de diagnósticos, uso indiscriminado de remédios para controlar atenção e até um salvo conduto para que muitos estudantes escapem das exigências naturais que o período universitário impõe.
As universidades, atravessadas por uma epidemia de dispersão, nasceram como espaços de concentração, lugares de escuta, de estudo, de contemplação e de diálogo profundo. Estudantes e docentes vivem sob o ruído constante das notificações, o bombardeio de estímulos e a urgência de resultados. O tempo de aprender foi comprimido, o silêncio perdeu valor e o corpo se tornou palco de uma inquietude incessante.
A ansiedade, antes vista como um distúrbio individual, tornou-se um sintoma social e institucional. Em muitos campi, ela é quase um idioma comum. Estudantes dormem mal, docentes sentem-se exaustos, e o foco tornou-se luxo. As queixas se multiplicam e expressam um fenômeno mais amplo: a transformação da atenção em recurso escasso e disputado.
A neurociência nos oferece explicações contundentes. O cérebro humano evoluiu para alternar entre momentos de atenção focada e períodos de repouso cognitivo, pausas em que se consolidam memórias e conexões criativas. Contudo, a hiperconectividade rompeu esse equilíbrio. Vivemos em estado de atenção fragmentada, com sistemas de recompensa ativados por cada clique, curtida e estímulo luminoso da tela.
Daniel Levitin, em The Organized Mind (2014), descreve como o bombardeio informacional reduz a capacidade do córtex pré-frontal de priorizar estímulos relevantes. Cada interrupção exige um custo cognitivo: o cérebro leva cerca de 20 minutos para recuperar o nível anterior de concentração. O ambiente digital estimula uma mentalidade de reação imediata, em detrimento da reflexão e da interioridade.
Na universidade, esses efeitos são tangíveis. A leitura profunda cede espaço ao “scrolling”. O tempo de estudo é invadido por notificações e multitarefas. A ansiedade surge como resposta fisiológica à sobrecarga, ativando o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e liberando cortisol em excesso. O corpo, assim, carrega o preço da mente dispersa: taquicardia, insônia, tensão muscular e fadiga crônica.
Manter a atenção, hoje, é resistir à lógica da velocidade e do excesso. É recusar a distração como modo de vida. O sujeito contemporâneo parece exaurido pela obrigação de performar, sempre ativo, produtivo e disponível. A dispersão seria, portanto, o sintoma mais visível de uma sociedade que transformou a hiperatividade em virtude. Currículos inflados, calendários saturados e uma cultura de urgência que impede a assimilação profunda do conhecimento. Existe acúmulo de tarefas, mas não experiências de sentido. Cumprir conteúdos não substitui encontros humanos que formam e transformam. O resultado é um campus povoado de corpos ansiosos, presentes fisicamente, mas ausentes de si.
A atenção é um sistema treinável, composto por redes neurais interdependentes. A atenção executiva, responsável pela concentração sustentada, melhora com práticas que integram corpo e mente, como mindfulness, respiração consciente e meditação. Isto tem sido cada vez mais recomendado, como oportunidade de melhoria do processo de atenção. Essas práticas, antes associadas ao campo terapêutico, vêm ganhando espaço em universidades de ponta como Harvard, Stanford e Oxford, que implementaram programas voltados à educação da atenção. Estudos publicados pela American Psychological Association (APA, 2023) indicam que estudantes que praticam pausas regulares apresentam melhor desempenho cognitivo, memória de longo prazo e menor nível de ansiedade.
No entanto, o cuidado não deve se limitar ao indivíduo. É também um gesto institucional. Ambientes ruidosos, salas sem ventilação natural, horários extenuantes e plataformas que estimulam notificações constantes sabotam qualquer tentativa de foco. Cuidar do espaço físico e do ritmo acadêmico é cuidar da mente, é permitir que o estudante respire entre uma tarefa e outra.
Diante desse cenário, assumir a reeducação da atenção passa a ser um novo compromisso formativo. Ensinar a pensar implica ensinar a sustentar o pensamento, a lidar com o tédio produtivo, a cultivar o silêncio interior. Como defende Howard Gardner, a inteligência não é apenas lógica ou linguística, mas também inter e intrapessoal, e assim exige autoconhecimento, escuta e regulação emocional.
O desafio é construir currículos que valorizam processos, e não apenas resultados, favorecendo a concentração e diminuição da ansiedade. Foco na fala, reflexão, no autoconhecimento se constituem como grandes aliados na reeducação da atenção. O corpo ansioso é, paradoxalmente, um corpo que pede presença. Ele sinaliza, por meio da tensão, do cansaço, do desânimo que o ritmo da vida perdeu sua medida humana. Escutá-lo é o primeiro passo para reeducar a mente. A atenção, afinal, nasce no corpo: na respiração, no movimento, no olhar atento ao outro. Quando o estudante reconecta corpo e mente, aprende não apenas conteúdos, mas modos de estar no mundo.
Reaprender a focar, portanto, não é apenas uma questão cognitiva. É uma reconstrução existencial. É o retorno à experiência de estar inteiro, corpo e mente alinhados, tempo e sentido reconciliados.
“Corpos ansiosos, mentes dispersas” é mais do que uma metáfora. É o retrato de uma geração que vive em permanente aceleração, e de uma universidade que precisa reencontrar o ritmo do humano. Educar, no século 21, talvez signifique antes de tudo ensinar a desacelerar, devolvendo ao estudante o direito à pausa, à escuta e ao silêncio fértil do pensamento.
Por: Josiane Tonelotto | 30/10/2025