NOTÍCIA

Edição 273

Matemática impede avanço nas exatas

Em entrevista, Sônia Guimarães aborda os avanços dos semicondutores, as transformações no ensino da física e a aplicação da metodologia de aprendizagem baseada em projetos

Publicado em 09/03/2023

por Sandra Seabra Moreira

Sônia Guimarães Sônia foi a primeira mulher negra ph.D. em física do Brasil (Foto: arquivo pessoal)

No mês de fevereiro, dia 16, Sônia Guimarães completou 30 anos como professora de física no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA. Parte deste período foi como pesquisadora no Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), fora da sala de aula. O motivo do afastamento da sala de aula é ponto alto de suas narrativas acerca das barreiras pelas quais passam as mulheres para se tornarem professoras universitárias, pesquisadoras, cientistas. De acordo com a Unesco, apenas 28% dos cientistas no mundo são mulheres. “No Brasil, elas produzem 75% dos artigos científicos, o que não significa ocupar cargos de poder, de decisão”, aponta Sônia.

Nascida em São Paulo, formada técnica em edificações, aos 18 anos Sônia foi estudar física na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde concluiu a graduação, e não voltou mais para a capital. O mestrado em física aplicada foi no Instituto de Física e Química de São Carlos (USP) e o doutorado (ph.D.) em materiais eletrônicos no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra. Queria engenharia civil, ficou com a física, a segunda opção, uma definição que veio no segundo ano da graduação, ao conhecer os semicondutores, ponto de partida para toda a tecnologia disruptiva que viria nos anos seguintes.

Sônia Guimarães foi a primeira mulher negra ph.D. em física do Brasil, também a primeira mulher negra a ingressar no quadro de docentes do ITA. É conselheira fundadora da Afrobras, ONG que deu origem à Faculdade Zumbi dos Palmares, a primeira e única para negros no Brasil. Inventora, criou uma técnica para produzir sensores de radiação infravermelha, usados em mísseis que detectam e abatem aviões. Em 2021, recebeu o Prêmio Professor Emérito – Troféu Guerreiro da Educação Ruy Mesquita, iniciativa do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) e do jornal O Estado de São Paulo.

 

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Num país que pouco valoriza suas pesquisadoras, Sônia tornou-se celebridade quando uma jornalista do portal El País, hoje extinto no Brasil, assistiu ao filme Estrelas além do tempo, de 2016, e se perguntou: quem são as pesquisadoras negras pioneiras no Brasil? Lá estava Sônia na reportagem, com foto estampada. Chegou ao programa do Bial em 2018. Das entrevistas migrou para palestras. Fala sobre física, mas principalmente sobre a sua trajetória como professora universitária e pesquisadora negra numa das mais prestigiosas universidades do país, militar, tradicionalmente branca e masculina. É dessa vivência que surgem as histórias que Sônia não cansa de contar. Faz lembrar a jornalista Glória Maria, que numa entrevista em 2019, relembrada com seu falecimento recente, disse: “Eu sou a luta”. Sônia Guimarães é a luta.

Nessa entrevista, a professora também aborda os avanços dos semicondutores, as transformações no ensino da física e a aplicação da metodologia de aprendizagem baseada em projetos. Com 66 anos, pensa na aposentadoria compulsória, que chegará aos 70, eoque virá pela frente. As palestras, agora também direcionadas para as áreas de ESG das empresas, estão no radar. Mas é pouco. “Ainda não sei o que quero ser quando crescer.”

 

Como surgiu o desejo de pesquisar os semicondutores?

No segundo ano da graduação, comecei a estudar Física Moderna, as equações de Maxwell. Há operadores matemáticos que explicam o surgimento de todo o espectro eletromagnético e a luz está entre eles. Sempre gostei muito da matemática e de repente ela estava explicando fenômenos físicos. Achei genial. Depois vieram os semicondutores e ali, então, decidi minha carreira, toda ela pesquisando semicondutores. O meu objetivo no doutorado era tornar os microprocessadores cada vez menores, mantendo ou aumentando sua eficiência. Hoje sou doutora em semicondutores aplicados a microdispositivos eletrônicos.

 

E essa área não para de crescer.

Sim. Essa tecnologia se ampliou. No meu tempo, trabalhávamos com o silício, agora, há pesquisa com novos materiais, fantásticos, para tudo quanto é propósito. Por exemplo, hoje os diodos orgânicos emissores de luz, dentro de um dispositivo microeletrônico, podem criar telas de uma brancura total ou negrura total, ou cores e imagens perfeitas, que nunca imaginamos. A física e a pesquisa continuam desenvolvendo novos materiais e tecnologias. As necessidades estão mudando. As pessoas querem mais facilidades na vida, mais tecnologia, menos trabalho, menos problemas. A ciência continua se desenvolvendo como nunca, nos lugares onde é incentivada e tem investimento.

 

Quais disciplinas você ministra no ITA?

Sou professora na Divisão de Ciências Fundamentais. São dois anos que todos os alunos que entram no ITA têm que fazer. No final do segundo ano, eles escolhem qual engenharia vão cursar. Dou aula de Física Instrumental 16, em que os estudantes aprendem a usar micrômetro, paquímetro, fazer medidas. Percebem as dificuldades de fazer as medidas, seus erros. E nesse período eles têm de fazer a medida da aceleração gravitacional da Terra. No segundo ano, dou a matéria de Corpos rígidos e inércia. Os alunos montam um helicóptero e o fazem funcionar. Este ano, quero montar também minidrones com eles.

 

Como você caracteriza a geração atual de estudantes?

Eles vêm com mais interesse, mais conhecimento tecnológico, mais técnica para fazer as medidas por meio de computadores. A física é a mesma, mas a transformação é grande no sentido de como estão lidando com a tecnologia.

 

O ensino da física também mudou?

Sim, é outro jeito de ver o fenômeno. Nada de chegar ao laboratório e ganhar perguntinha para dar respostinha. Antigamente, no laboratório, já tinha o roteiro: faça isso, gira o botão assim, depois assim. Isso acabou. O aluno precisa criar, fazer o experimento. Ele tem uma meta: medir a aceleração da gravidade. Como vai fazer isso? Vai pesquisar, ver quem fez e por que fez. Depois vai montar o experimento, medir e verificar o valor que obteve. Por que o valor está diferente, o que aconteceu? O que poderia ter feito melhor para que o resultado que obteve fosse mais próximo do que foi medido por outras pessoas? Isso é aprender física por dentro, experimentando. Nada de roteiro, receita de bolo.

Por exemplo, aprendendo inércia com o helicóptero. No princípio da inércia, um corpo vai ficar sempre em repouso ao menos que uma força aja sobre ele. No nosso caso, vamos colocar uma hélice nesse corpo e movê-lo. Também pela inércia, o estudante tem que fazer com que a hélice não gire o helicóptero junto com ela. Além de montar o helicóptero, tem que fazer voar. Não é só o princípio da inércia, mas como você faz com que esse corpo se mova, um corpo girante em movimento.

 

Como está o interesse das jovens estudantes em relação aos cursos do ITA?

Até 1996, elas eram proibidas de fazer vestibular. Em 2021, com pandemia e tudo, entraram 17. Em 2022, mais dez meninas. Em 2023, nove. Parece diminuir, mas a melhor nota do vestibular de 2023 é de uma menina. A terceira melhor nota também. Ok, diminuiu um pouco o número, mas a qualidade das meninas é bárbara. Em 2022, a melhor engenheira, a que tirou 9.5, de máxima 10, em todas as matérias, do curso inteiro de engenharia eletrônica do ITA, foi uma mulher.

 

Elas encontram mais barreiras do que os estudantes homens?

O problema das exatas está na matemática. E isso não é só com as mulheres, é com os estudantes em geral. Eles entram no primeiro ano e precisam cursar Cálculo 1. É uma matemática que ninguém viu no ensino médio. Eles levam bomba em Cálculo 1 e desistem, isso está barrando muita gente. É um problema sério.

Algo deve ser feito na própria graduação. Conheço professores da UFRJ e UFBA tentando fazer algo a respeito, mas as instituições não estão preocupadas. Isso prejudica o aumento de pessoas nas ciências exatas. E acontece que quando as meninas tomam bomba, ouvem coisas como “não falei que esse curso não era para você?”. Elas acabam desistindo. Já os meninos, sempre tem alguém para dizer “você consegue”.

 

Em 2019, o ITA implantou as cotas, na graduação, para alunos negros. Há programas específicos da instituição para facilitar a permanência de estudantes negros e mulheres na carreira acadêmica, como bolsas para mestrado e doutorado?

Desconheço, mas seria bom. As dificuldades se aprofundam, sobretudo para as mulheres. Ok, consegue passar em cálculo 1, 2,3e4. São aprovadas na graduação, se formam. Aí vão dar aulas para nível médio? Talvez tenha sido o plano, mas se quiser continuar, para dar aula na universidade, como farão sem recursos? Conseguiu doutorado, vai fazer concurso, o chefe é homem, toda a banca é homem – no meu caso foi exatamente assim – aí tem você e tem um concorrente do gênero masculino. Quem vão escolher, mesmo que seu currículo seja fantástico?

 

Egressos do ITA têm problemas para encontrar uma vaga de trabalho? Você acompanha os alunos depois de formados?

Aluno do ITA tem trabalho em qualquer lugar do Brasil ou do mundo. Muitos deles querem abrir as próprias empresas, e vão fazê-lo onde for mais interessante, no Brasil ou fora. E há projetos interessantes. Um dos meus aconselhados tem a ideia de dar aula de códigos, um conteúdo importante, que nenhuma escola oferece, mas deveria, do começo do ensino fundamental em diante. Não tem que aprender física e matemática para isso, nem precisa de conhecimento em computação. Na verdade, são orientações em relação aos códigos funcionais. Meu aluno é craque nisso.

 

Você entrou no ITA em 1993. Como foram os primeiros anos lá?

Sônia Guimarães: Matemática impede avanço nas exatas

Sônia é conselheira fundadora da ONG Afrobras (Foto: arquivo pessoal)

Foram terríveis. Eles não queriam que eu ficasse. A pessoa que obteve o primeiro lugar no concurso não assumiu, eu vinha em seguida, assumi. Houve quem quisesse cancelar o concurso. No meu terceiro ano no ITA, essa mesma pessoa que achava que eu não deveria ser aceita entrou na minha sala com avaliações de 12 alunos. Eu dava aula para 120 meninos, não havia meninas nessa época. Nas avaliações constava que “a professora Sônia não sabe física”, “é a pior professora” e “usa roupas que chamam muita a atenção para o seu corpo”. Por causa dessa avaliação fui expulsa por 13 anos, de 1996 a 2008. Fui enviada para o Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE).

 

E lá, no IAE, tornou-se inventora. É isso?

Inventei uma técnica para produzir sensores de radiação infravermelha, de novo com semicondutores. Esses sensores, uma vez encapsulados, se tornam detectores de radiação infravermelha. Meu sensor detecta a temperatura de 600 kelvin, que é exatamente a temperatura de um motor de avião funcionando. Na cabeça de um míssil, esse detector faz com que ele detecte o motor funcionando. É dessa forma que o míssil vê o avião, o persegue e destrói. Eu pedi uma patente, ela saiu, então além de pesquisadora eu sou inventora. A invenção pertence à Aeronáutica, é estratégica e superconfidencial. Mas não há cursos no IAE, então, na verdade, me proibiram de dar aula. Quiseram me apagar e só fizeram eu acender ainda mais.

 

Como foi seu retorno à sala de aula?

Acabaram os recursos para as pesquisas e um físico que dava aula na engenharia eletrônica precisou se afastar. Fui substituí-lo. Mas nada mudou muito. Não é um ambiente amigável até hoje.

 

Quais mudanças você percebe na instituição após a implantação de cotas para alunos negros?

Está mudando a maneira como os alunos me veem. Quando dei a entrevista para o Bial, numa resposta disse “os alunos me odeiam”. Em 2019 começaram as mudanças. Um aluno me escreveu e-mail: “professora, eu sou branco, não tenho problemas financeiros, mas o que você disse no Bial é exatamente o que acontece no ITA”. Em 2022, uma menina escreveu na entrega do último trabalho do semestre: “foi uma honra ter tido aula com a senhora. Eu e minhas colegas estamos muito contentes com o seu curso”. Isso nunca tinha acontecido – em trinta anos.

Outra aluna, negra e de família simples, conseguiu meu número de celular, me ligou. “Professora, eu quero muito lhe conhecer. Eu assisti a uma palestra sua e você disse que eu poderia estar onde eu quisesse. Olha eu aqui no ITA!.” Ela me levou ao H-8, a moradia dos estudantes, local onde eu nunca tinha ido – em trinta anos.

 

Como está sua agenda de palestras? Quais assuntos prioriza?

Lotada. Eu não posso parar de falar. Eu estimulo a entrada de meninas nas ciências exatas, falo de superação de obstáculos a estudantes negras. Agora, vou falar sobre ESG para empresas, que não têm mais opção: precisam se tornar mais diversas e inclusivas. Tenho uma lista de pesquisadoras negras que lidam com a sustentabilidade, por exemplo. Eu espero que esse movimento de interesse das empresas pela diversidade continue a crescer, mas que o dinheiro vá para o bolso das pessoas pretas. Porque acontece isso, tem de haver diversidade, mas quem vai ganhar dinheiro é o branco. Eu quero diversidade, inclusive, entre os que põem dinheiro no bolso.

Autor

Sandra Seabra Moreira


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