Educação

Colunista

Alexandre Gracioso

Especialista e consultor em ensino superior e gestão educacional

Disciplina e autorregulação mudam a vida

Autorregulação e autodisciplina são competências que podem ser ensinadas, aprendidas e desenvolvidas

Disciplina e autorregulação Pessoas experimentam grandes dificuldades para se autodisciplinar e autorregular (foto: Freepik)

Ano novo, novos desafios, promessas e metas. Todos já estivemos lá, “este ano vai”, “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”, somente para nos decepcionarmos com nossa falta de persistência que começa a se manifestar tão logo passe a euforia dos brindes das festas de fim de ano.

Para não recorrer a citações pretensiosas, vou me valer do sucesso de 1985 da banda inglesa Tears for Fears, Everybody Wants to Rule the World. Considerada por muitos uma das melhores músicas da década de 1980, a canção fala do desejo humano de ter as coisas ao seu jeito, de comandar, de mudar o mundo à sua vontade. Certamente essa característica humana não é nova, mas aqui foi retratada de forma tão lírica que 40 anos depois as pessoas ainda se lembram da letra.

 

 

Mas há uma falha nesse desejo tão sincero de mudar o mundo pra melhor. Qualquer plano que possamos ter a respeito de nós mesmos ou das circunstâncias que nos rodeiam só vira realidade com determinação, persistência e ações continuadas. Ou seja, com disciplina.

 

Dificuldade em manter o foco

 

É notório que as pessoas experimentam grandes dificuldades para se autodisciplinar e autorregular. Especialmente no mundo tecnológico contemporâneo, onde tudo é muito rápido, queremos gratificação instantânea por qualquer coisa que façamos, qualquer esforço, por mínimo que seja, que demonstremos. E não aceitamos menos do que uma demonstração efusiva de apreço pelas nossas tentativas, ainda que débeis.

Em seu livro “O Valor do Amanhã”, Eduardo Gianetti (2005) (1) o autor afirma que é muito simples compreender aquilo que, na economia, recebe o simpático nome de “trocas intertemporais”:

As trocas no tempo são uma via de mão dupla. A posição credora – pagar agora, viver depois – é aquela em que abrimos mão de algo no presente em prol de algo esperado no futuro. O custo precede o benefício. No outro sentido temos a posição devedora – viver agora, pagar depois. São todas as situação em que valores ou benefícios usufruídos mais cedo acarretam algum tipo de ônus ou custo a ser pago mais à frente. (p.10)

 

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Autodisciplina e autorregulação, portanto, nos colocam em posições credoras em relação ao tempo. Fazemos exercício hoje para usufruir de uma melhor saúde amanhã. Comemos de forma correta hoje, paramos de fumar, diminuímos ou eliminamos o consumo de bebida alcoólica na mesma expectativa. E, claro, o mesmo vale para a aprendizagem: estudamos hoje, nos dedicamos hoje, para colher algum benefício dessa aprendizagem no futuro, por exemplo, melhores notas, um trabalho melhor avaliado.

Sabemos disso, não sabemos? Todos sabemos disso. Mas, por que, então, temos tanta dificuldade em nos disciplinarmos, em regular nossos desejos? Por que temos tanta dificuldade em sentar para estudar, para terminar um relatório, para começar um relatório, para finalizar uma apresentação?

Esta é uma questão que vem recebendo a atenção tanto de acadêmicos, quanto de profissionais de outras áreas, que se frustram frente à incapacidade de seus estudantes e liderados de manter o foco no que precisa ser realizado. Por exemplo, Ethan Sterling, empresário estadunidense que escreve sobre competências necessárias a empreendedores, destaca o efeito nocivo da falta de autorregulação e de autodisciplina (2). Em seu artigo, Ethan elenca 11 fatores pelos quais algumas pessoas podem não conseguir progredir em direção a suas metas, um dos quais é a falta de autodisciplina. Os outros dez fatores se referem a falta de controle dos pensamentos, da motivação, se ver como vítima ou não aceitar críticas, pintando um quadro maior, mais amplo, do que a falta de disciplina e que poderia ser chamado de incapacidade de se autorregular.

 

Obstáculos à autodisciplina

 

A pesquisa científica e acadêmica traz algumas luzes sobre o porquê temos tanta dificuldade de nos autorregular e de manter a disciplina. Um artigo de 1998 oferece uma pista surpreendente de porque a nossa força de vontade parece se esvair em algumas situações. Baumeister et al (1998) (3) argumentam que as pessoas, ao utilizar e exercer autodomínio, sofrem um progressivo esgotamento do ego, devido ao fato de que o controle consciente e deliberado de nossas ações, de nosso comportamento, de nossas escolhas, se valer de um recurso interno, que eles chamam, no artigo, de self. Esse recurso se esgota à medida em que resistimos a tentações e exercemos autorregulação emocional e comportamental.

Um experimento muito interessante é o do chocolate. Pessoas foram divididas em dois grupos, um dos quais comeu chocolate e outro que teve que se controlar e, ao invés de chocolate, comer rabanetes, em um claro exercício de autodomínio. Verificou-se que o grupo que se autocontrolou e comeu rabanetes, em tarefas subsequentes manifestou menos autodomínio. Eles já haviam gasto sua capacidade de controle interno para comer rabanetes ao invés de chocolates.

Outros dois fatores que exercem grande efeito e, ao menos assim me parece, podem estar associados e se reforçar mutuamente são o uso excessivo de distratores digitais e o gosto por gratificação imediata. Em um artigo de 2017, Ward et al. (4) relatam que a mera presença do smartphone é suficiente para distrair uma pessoa e diminuir sua capacidade cognitiva e de direcionamento sustentado da atenção. Talvez em parte isso se explique pela marcada preferência das pessoas por satisfação imediata, algo que em economia comportamental é denominado “desconto hiperbólico das preferências temporais”.

 

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O fenômeno do desconto hiperbólico explica porque preferimos recompensas imediatas às vezes substancialmente menores do que benefícios futuros. A figura abaixo mostra como uma pessoa consideraria uma oferta hipotética de receber R$50 agora ou R$100 em algum momento futuro.

 

Figura 1

 

Percebe-se que uma diferença de poucos dias já faz com que a pessoa prefira os R$50 imediatos. Por outro lado, receber os R$100 daqui a 100 dias, ou 150 dias não faz muita diferença.

Esse fenômeno se aplica a todas as trocas intertemporais, para utilizar o termo proposto por Gianetti, e os celulares e outros eletrônicos nos oferecem verdadeiros banquetes de recompensas instantâneas. Entre a perspectiva de estudar, escrever um texto, fazer ginástica, ligar para uma enorme lista de clientes potenciais, atividades, todas estas, que prometem um retorno futuro desconhecido e a alegria de progredirmos instantaneamente em várias fases de uma diversão eletrônica, a última nos parece muito mais atraente.

 

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Outro fator importante que prejudica a capacidade da pessoa se manter focada e disciplinada é a ausência de uma rotina estruturada. Wood, Quinn e Kashy (2002) (5) analisaram o papel dos hábitos na orientação do comportamento, pensamento e emoção no dia a dia. A pesquisa envolve relatos nos quais os participantes registravam a cada hora as suas atividades quotidianas, concentrando-se nos processos cognitivos associados aos comportamentos habitual e não habitual.

As principais descobertas indicam que, quando os indivíduos estão envolvidos em comportamento habitual, que é definido como comportamento que foi realizado quase diariamente em contextos estáveis, eles tendem a pensar em questões não relacionadas à atividade que estão realizando naquele momento. Isso sugere que ações habituais não requerem orientação consciente, permitindo que a mente se concentre em outros assuntos. Por outro lado, comportamento não habitual, ou ações realizadas com menos frequência ou em contextos variáveis, exigem pensamento consciente e deliberado. Além disso, e de particular importância para nosso contexto, foi a conclusão deles que “vida cotidiana, o desempenho de hábitos provavelmente não esgotar os recursos de autorregulação da mesma forma que o comportamento deliberado, e isso pode permitir que as pessoas conservem força regulatória para decisões importantes” (p. 1295).

 

Alavanca para o sucesso

 

O psicólogo e educador Barry Zimmerman tem uma vasta experiência empírica e de pesquisa em aprendizagem e desempenho acadêmico. Ele desenvolveu a teoria da aprendizagem autorregulada e, ao contrário de pensadores que vieram antes dele, Zimmerman afirma que a aprendizagem não é algo que acontece “aos” estudantes, mas que é algo que acontece “pelos” estudantes, que possuem um papel ativo e fundamental no processo. Neste contexto, a capacidade de manter o foco e a atenção no processo e na tarefa de aprendizagem é fundamental.

Zimmerman identifica diversos benefícios para estudantes que aprendem a se autorregular. Claro, o desempenho acadêmico como um todo melhora, mas outros benefícios mais específicos também são relatados na literatura sobre o tema.

Inicialmente, cabe destacar que a capacidade de se autorregular passa pelo desenvolvimento efetivo de habilidades de metacognição. Isso significa que estudantes autorregulados desenvolvem uma consciência mais precisa de seus próprios processos mentais; aprendem a monitorar, avaliar e ajustar suas estratégias e aprendizagem. Essa autoconsciência favorece uma gestão do tempo mais efetiva, com melhor resposta a desafios e imprevistos que possam ocorrer ao longo do processo (capacidade de adaptação).

 

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Assim equipados, estudantes autorregulados conseguem assimilar melhor a ansiedade naturalmente envolvida na atividade acadêmica e apresentam um aumento na sua autoeficácia, ou seja, na crença em sua capacidade de influenciar seu próprio sucesso. Muitas vezes, esses bons resultados conduzem a uma maior motivação e a um maior engajamento nas tarefas (ver 6, 7 e 8 como referências para estes resultados).

Outro importante pesquisador que escreveu sobre os benefícios de se conquistar o domínio da atenção e do foco foi o psicólogo Daniel Goleman. Em sua obra de 2013, Foco: O motor oculto da excelência, Goleman analisa a importância da manutenção da atenção e do foco para a conquista de objetivos pessoais, acadêmicos e profissionais (com maior ênfase nestes últimos).

 

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Em termos profissionais, podemos inicialmente identificar um aumento na produtividade, o que seria de se esperar. Outros benefícios, no entanto, são menos evidentes. Para pessoas em posição de liderança, Goleman relata melhoria nas habilidades de liderança, provavelmente devido a uma melhor capacidade de prestar a atenção aos outros, melhorar a escuta e a comunicação como um todo. Não só isso, pessoas com maior capacidade de manter o foco na interlocução se tornam mais empáticas.

Benefícios interpessoais não são os únicos que o autor identificou. Em sua lista também figuram a melhoria da capacidade de tomada de decisão e até mesmo o afloramento da capacidade criativa. Goleman argumenta que isso ocorre pois a atenção autorregulada permite que os profissionais se aprofundem em problemas complexos e encontrem soluções inovadoras

 

Fortalecendo nossa capacidade de autorregulação

 

Autorregulação e autodisciplina são competências que podem ser ensinadas, aprendidas e desenvolvidas. Um dos principais argumentos de Zimmerman, por exemplo, é que professores deveriam auxiliar seus estudantes a desenvolver a autorregulação. O autor descreve, em várias de suas obras, o processo que ele idealizou para direcionar o estudo autorregulado. Aqui usaremos como base a descrição oferecida em Zimmerman, Booner e Kovach (1996) (10), onde os autores descrevem um ciclo contínuo de autorregulação em três etapas:

  1. Planejamento e Preparação;
  2. Atuação e Monitoramento contínuo;
  3. Autorreflexão e Autoavaliação.

Na primeira fase, o estudante compreende a tarefa e estabelece objetivos claros para a mesma. Igualmente importante, ele/ela também se imbui de motivação e confiança para a realização da tarefa. Finalmente, ainda nesta fase, o estudante escolhe as estratégias que irá utilizar para realizar a tarefa

A seguir, o estudante irá executar a tarefa de acordo com as estratégias selecionadas anteriormente. É fundamental, durante esta etapa, o estudante observar o seu próprio comportamento e se lembrar de manter o foco continuamente.

Finalmente, vem a fase da autoavaliação, reflexão sobre o próprio desempenho. Caso o desempenho não tenha sido o esperado, as causas dessa diferença devem ser identificadas e corrigidas na próxima tarefa.

 

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Este modelo é iterativo, significando que a experiência e reflexão em cada ciclo informam e melhoram os esforços em ciclos futuros. Zimmerman argumenta que, ao aplicar este processo, os estudantes aprendem a se tornar mais responsáveis ​​e eficazes em seu próprio aprendizado, desenvolvendo habilidades de metacognição, autoeficácia e autodirecionamento.

Um ponto importante é que qualquer pessoa pode desenvolver sua capacidade de se autorregular. Além de nos motivarmos deliberadamente a utilizar um processo como este, podemos encorajar nossos estudantes a adotar este modelo através de atividades reflexivas, discussões em grupo sobre estratégias de aprendizagem, e projetos que requerem planejamento, execução e avaliação, com benefícios para a aprendizagem e também para a vida profissional.

Então, voltando ao início deste artigo, o que vai ser deste ano? Não dá pra saber. Mas o que podemos, com bastante razoabilidade, antecipar é que cada um irá colher o que, de forma disciplinada, semear. Muitos de nossos estudantes ainda têm uma certa dificuldade em compreender esse ciclo contínuo da vida e cabe a nós, seus mentores e professores, alertá-los para essa realidade.

 

Referências

 

(1) Gianetti, Eduardo (2005). O Valor do Amanhã: Ensaio sobre a natureza dos juros. Companhia das Letras

(2) Sterling, Ethan (2024): People who never move forward in life often display these 11 behaviors, disponível em https://hackspirit.com/people-who-never-move-forward-in-life-often-display-these-behaviors/, acesso em 12 de janeiro de 2024

(3) Baumeister, Roy; Bratslavsky, Ellen; Muraven, Mark; Tice, Dianne (1998). Ego Depletion: Is the Active Self a Limited Resource?, in Journal or Personality and Social Psychology, 1998, Vol. 74, No. 5, 1252-1265

(4) Ward, Adrian; Duke, Kristen; Gneezy, Ayelet; Bos Maarten (2017). Brain Drain: The Mere Presence of One’s Own Smartphone Reduces Available Cognitive Capacity, in JACR, volume 2, number 2. Published online April 3, 2017. http://dx.doi.org/10.1086/691462

(5) Wood, Wendy; Quinn, Jeffrey; Kashy, Deborah (2002). Habits in Everyday Life: Thought, Emotion, and Action, in Journal of Personality and Social Psychology 2002, Vol. 83, No. 6, 1281–1297

(6) Zimmerman, Barry; Shunck, Dale (1989). Self-Regulated Learning and Academic Achievement Theory, Research, and Practice. Springer-Verlag, Nova Iorque

(7) Schunk, Dale; Greene, Jeffrey (Editors) (2017). Handbook of Self-Regulation of Learning and Performance. Reutledge, Nova Iorque

(8) Nilson, Linda. Creating sel-regulated learners (2013). Stylus Publishing, Sterling

(9) Goleman, Daniel (2013): Foco, O Motor Oculto da Excelência. Temas e Debates, Lisboa

(10) Zimmerman, Barry; Booner, Sebastian; Kovach, Robert (1996). Developing Self-Regulated Learners: Beyond Achievement to Self-Efficacy, American Psuchological Association, Washington, DC

 

Por: Alexandre Gracioso | 15/01/2024


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