Educação

Colunista

Daniel Sperb

Consultor em inovação e gestão universitária

Sobre caravelas e esperança

Para enquadrar a inovação como competência intrínseca, é preciso estimular o apetite por idéias radicais em toda a estrutura organizacional e envolver a IES em um constante estado de inventividade

Sobre caravelas e esperança | Inovação Estruturar teses de inovação com a adoção de células autônomas e orçamentos dedicados representa um ótimo começo para as IES dispostas a superar a estagnação e fomentar a mudança

Eu cresci ouvindo piadas sobre a escolha da minha profissão. Em reuniões de família, nos grupos onde os pais se vangloriavam de seus filhos terem passado no vestibular para medicina, odontologia, engenharias, meu pai e minha mãe suavam frio.

Eles sabiam que em algum momento seriam questionados sobre a minha escolha, afinal, minha irmã havia feito farmácia e meu irmão, educação física, ambos na Universidade Federal de Santa Maria – RS. 

Em churrascos ou festas com amigos, também não demorava muito até o assunto vir à tona e começarem as piadas de cunho preconceituoso. A verdade é que ninguém sabia ao certo o que fazia um profissional formado no curso que eu havia escolhido e, jovem, tampouco tinha a segurança e o conhecimento necessário para explicar. 

Antes de ingressar no ensino superior, minha relação com a educação formal era um tanto conturbada. Ao longo dos antigos primeiro e segundo grau, minha trajetória foi marcada por algumas reprovações de ano e frequentes visitas ao Sistema de Orientação ao Estudante (SOE).

 

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Eu frequentava o SOE tanto quanto a professora do SOE. Por vezes, chegava ao SOE antes mesmo dela. Em uma das vezes, na quinta série, ao chegar na sala dela e me ver lá esperando, a “tia do SOE”, como chamávamos carinhosamente nossa orientadora educacional, questionou: “O que foi desta vez, Daniel? O que você aprontou?” 

A razão era quase sempre a mesma. Eu estava desenhando. Desenhava tudo, inclusive os colegas. Os desenhos nem sempre eram politicamente corretos, mas é melhor não tocar nesse assunto. Houve um dia em que aconteceu algo diferente.

Numa aula de história em que a professora falava sobre capitanias hereditárias, lá estava eu no fundão, como sempre, desenhando e conversando um pouco além da conta. Contudo, a aula estava tão boa e o relato da professora tão envolvente que me vi em meio a caravelas e, quando me dei conta, meu caderno já estava tomado por desenhos e não havia nem mesmo uma folha em branco. 

Olhei para a classe, com aquela fórmica verde claro, ela olhou para mim, rolou um clima, e foi ali mesmo – comecei a desenhar na classe. Era uma caravela linda e eu estava com o braço escuro de grafite do lápis. 

Foi então que tudo aconteceu. A professora interrompeu sua fala e, quando me dei conta, ela estava, juntamente com toda a turma, me observando enquanto eu desenhava como se não houvesse amanhã. 

 

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Contudo, desta vez, ao invés de me mandar para o SOE, ela veio na minha direção. “Meu Deus”, pensei. Ela parou na minha frente e falou: “Que lindo, hein?” Fiquei sem fôlego e pensei: “É o meu dia de glória.” Foi então que ela disse: “Você sabe o que você fez aí?” Era o dia mais feliz da minha vida, pois a professora estava falando comigo sobre a matéria. Então respondi com um sorriso repleto de orgulho e felicidade: “Sim, professora, eu sei. É uma caravela.” E foi então que a realidade se mostrou dura e impiedosa, pois ela respondeu: “Não. Isso se chama vandalismo. Direto para o SOE, Daniel”. Quando conto essa história as pessoas costumam rir nessa parte. Você está rindo? 

O que essa experiência nos ensina? Que eu não deveria ter desenhado na classe? Certamente, mas demorou alguns anos até que eu refletisse sobre essa história e começasse a ponderar: e se, ao invés de me enviar para o SOE, ela tivesse aproveitado minha inclinação para o desenho, me oferecendo uma parte do quadro para realizar o que hoje conhecemos como facilitação gráfica, ilustrando o conteúdo da sua aula?

Talvez ela não estivesse familiarizada com a Programação Neurolinguística (PNL) e desconhecesse os estilos de aprendizagem visual, cinestésico e auditivo. Mas e quanto a nós? Enquanto gestores e educadores, como tratamos a diferença em nossas IES e salas de aula?

Com o passar do tempo, continuei aprimorando minha paixão pelo desenho. Quando chegou o momento de escolher minha graduação, optei naturalmente por desenho industrial com ênfase em desenvolvimento de produtos na Universidade Franciscana em Santa Maria (RS). Foram quatro anos de dedicação intensa e paixão, durante os quais, surpreendentemente – contém ironia –, não fui reprovado nenhuma vez. Nesse período, desenvolvi diversos produtos, mas um em particular transformou minha vida.

 

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Sob a orientação do professor Sérgio Brondanni, que despertou meu interesse por artigos científicos e congressos de design e ergonomia, enfrentei o desafio de criar um produto que melhorasse a vida de crianças com necessidades especiais. 

Escolhi desenvolver um triciclo adaptado para um menino chamado Iuri, que tinha quadriparesia atetóide moderada. O objetivo era proporcionar a ele uma forma de recreação que também fortalecesse seus membros inferiores. Este projeto exigiu uma abordagem multidisciplinar, contando com a colaboração de médicos, educadores especiais e fisioterapeutas para ser concretizado. No entanto, esbarrei em um grande obstáculo: a falta de recursos financeiros para adquirir os materiais necessários.

Nesse momento, o inesperado aconteceu. Um anjo, chamado Diógenes Silva, recém-formado em Medicina pela UFSM, ofereceu-se para cobrir todos os custos do projeto após ouvir sobre ele. O ano era 2003 e essa foi a primeira experiência dele como investidor e a minha como investido. Hoje, Diógenes é uma referência internacional em anestesiologia com sua startup Anestech, a qual tive a honra de ajudar com meus conhecimentos em design e estratégia por duas vezes nos últimos anos. Pensem na emoção na hora de passar o orçamento escrito: zero – pago em 2003.

O projeto do triciclo não só foi um sucesso, como também foi doado para uma escola e atendeu mais de 400 crianças com deficiência, marcando profundamente minha vida. Publiquei o estudo em vários congressos nacionais e internacionais de ergonomia. No ano seguinte, formei-me, ingressei no mestrado em engenharia de produção pela UFSM e comecei minha carreira acadêmica como professor e coordenador do curso de design, no interior do Rio Grande do Sul.

 

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Apesar da trajetória exitosa, as piadas sobre minha escolha profissional não cessaram e pior, sofreram uma mutação. Constantemente eu ouvia críticas sobre sistemas infográficos que eu costumava implementar na gestão acadêmica com o objetivo de mapear jornadas e criar softwares. Contudo, esta abordagem foi reconhecida pela Revista Ensino Superior número 224 em 2017. 

Após entrar no doutorado em engenharia pela UFRGS, passei a oferecer consultorias em reposicionamento estratégico para IES, utilizando uma metodologia que desenhei, os “Fatores essenciais de gestão universitária”, tema de um ensaio na edição 243, de 2019, da Ensino Superior. Eu não parava de desenhar.

Apesar das dificuldades e das piadas sobre design, desenvolvi metodologias e softwares que, com o tempo, foram adotados por importantes IES no Brasil, incluindo o Check para avaliações in loco e o Link para curricularização da extensão e projetos integradores.

Optei por compartilhar minha jornada pessoal neste artigo por um motivo essencial: alertar você, leitor, que jamais subestime a força do sistema imunológico corporativo que, de maneira implacável e muitas vezes velada, combate tudo que é novo ou diferente. 

Minha carreira foi marcada por uma dualidade intrigante: enquanto enfrentava preconceitos por adotar a inovação através do design, também testemunhei o entusiasmo de mantenedores e dirigentes pelos resultados dessa abordagem. Vivemos o “hype” da inovação, não é mesmo? No entanto, poucos mostraram persistência e visão de longo prazo para superar o sistema imunológico institucional com os seus desafios políticos, sempre que algo ameaçou a hegemonia da cultura de comando e controle.

Se a cultura come a estratégia no café da manhã, podem ter certeza que a execução devora o planejamento no almoço e a inovação morre antes do jantar.

 

Mas como uma IES pode dar o primeiro passo para inovar em seu modelo de gestão?

 

Estruturar teses de inovação com a adoção de células autônomas e orçamentos dedicados representa um ótimo começo para as IES dispostas a superar a estagnação e fomentar a mudança. Inspirando-se em corporações inovadoras como Natura, Randon e Gerdau, essa abordagem viabiliza um ambiente propício ao desenvolvimento de projetos inovadores e atrai empresas capazes de resolver problemas e agregar valor às IES.

Uma IES não pode “decidir” ser inovadora. A inovação é um atributo que surge quando se evidencia uma mentalidade certa, habilidades adequadas e a destreza de multiplicar essas competências por meio da colaboração.

Para enquadrar a inovação como competência intrínseca, é preciso estimular o apetite por idéias radicais em toda a estrutura organizacional e envolver a IES em um constante estado de inventividade.

Faço um apelo aos dirigentes do segmento educacional: não cometam o erro da minha professora de história, que não soube lidar com o diferente, com o novo e muito menos soube potencializar a criatividade para gerar inovação.

O futuro do ensino superior depende da capacidade de acolher a inovação, muito além do discurso. Depende de reconhecer e nutrir o potencial criativo de colaboradores, transformando-os em uma força motriz para celebrar as diferenças, cultivar a diversidade e criar a tão sonhada diferenciação.

 

Por: Daniel Sperb | 09/02/2024


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