NOTÍCIA

Edição 282

Não existe economia forte sem educação e ciência

Helena Bonciani Nader é a primeira mulher a alcançar a presidência desde 1916, ano de criação da Associação Brasileira de Ciências, portanto, há mais de um século

Publicado em 19/03/2024

por Sandra Seabra Moreira

Helena Bonciani Nader, presidente da Academia Brasileira de Ciências Para Helena Bonciani Nader, ministérios e Congresso Nacional não veem a destinação de recursos para a ciência como investimento (foto: divulgação/Academia Brasileira de Ciências)

Eleita em 2022 para presidir a Academia Brasileira de Ciências por três anos, a biomédica, pesquisadora e professora titular da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Bonciani Nader, é a primeira mulher a alcançar o cargo desde 1916, ano de criação da ABC, portanto, há mais de um século. Foi vice-presidente na gestão anterior, presidida pelo físico Luiz Davidovich. O ineditismo da sua presença na liderança da entidade é a prova de que há muito a realizar para que a ABC espelhe a equidade de gênero presente na produção científica brasileira. Nesta entrevista, ela conta como está transformando esse contexto após pouco mais de um ano na presidência.

Aos 76 anos, concedeu entrevista remota no laboratório da Escola Paulista de Medicina, da Unifesp. “Tive de me aposentar um mês antes de fazer 75, sou de novembro, mas continuo, estou aqui no laboratório, trabalhando.” A Unifesp é também sua alma mater. “Sou da turma de 1967, a segunda do curso de ciências biomédicas, que foi inventado na Escola Paulista de Medicina e depois se espalhou para todo o Brasil.” Após se formar, fez licenciatura em biologia, doutorado na USP, e rumou para instituições estrangeiras. “Fui várias vezes para o exterior, sempre com dinheiro das instituições estrangeiras”, frisou.

 

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“Sou membro da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, da brasileira, da latino-americana e da mundial”, diz, sorrindo. Ela é copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências (Ianas, na sigla em inglês), ao lado da norte-americana Karen B. Strier. Animada, conta que a Ianas trará três nobelistas – cujos nomes manteve em segredo – para conversar com alunos da América Latina e Caribe, em evento presencial no dia 15 de abril, no Rio de Janeiro, e 17 de abril em São Paulo.

Este ano, entre os muitos compromissos da presidente, estão a 5ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, em abril; a Reunião Magna, o evento mais importante da ABC, no início de maio, e as atividades do Science-20, ou S-20, o braço científico do G-20, o grupo de engajamento das Academias de Ciências dos países que formam o grupo. Neste mês de março acontece a primeira reunião no Brasil. A Cúpula de líderes do G-20 – com 19 países, a Comunidade Europeia e a União Africana –, acontecerá nos dias 18 e 19 de novembro. O Brasil é sede e assumiu a presidência rotativa.

 

Quais são os desafios frente à equidade de gênero, tema que sua presença na presidência da ABC, a primeira mulher depois de mais de um século, suscita de maneira inescapável?

São muitos. Inclusive porque a ABC é uma instituição centenária, o que torna a situação ainda mais peculiar. É preciso manter a tradição, a qualidade e a eficiência da ABC e trazer novos enfoques. Desde a época em que era vice-presidente, eu e o presidente, Luiz Davidovich, percebemos que a ABC tinha poucas mulheres. Há muitas mulheres capacitadas na ciência brasileira. Fizemos a pergunta: o que está acontecendo? Decidimos realizar uma busca ativa. Encontrar onde estão essas mulheres.

 

Como funciona a admissão na ABC e qual o resultado dessa busca ativa?

Todo ano são eleitos novos membros, e o número varia de ano para ano. As pessoas são propostas por acadêmicos. Passam numa primeira fase, em que uma comissão de seleção elenca nomes. Em seguida, vai para a votação na área de trabalho em que atua aquele pesquisador ou pesquisadora. Quem passa nessa fase vai para uma fase final, em que votam os membros da ABC. Com a busca ativa, conseguimos aumentar o percentual de mulheres entre os novos membros seniores. Foram 20 eleitos no final de 2023 – 12 mulheres e oito homens. Isso sem fazer política de cotas. É um pouco complicado criar cotas no âmbito da ABC, porque fica um olhar, para quem está de fora, de que aquela pessoa entrou por causa da cota. Na ABC não pode ser assim.

 

E nas universidades? Qual sua posição acerca das cotas raciais e sociais?

Nas universidades, sim. Eu fui uma das primeiras pró-reitoras de graduação, no sistema federal, junto com a Universidade Brasília (UNB), a criar as cotas. Sou totalmente a favor, mas são mundos diferentes.

 

Como está a ABC em relação à presença de acadêmicos negros e indígenas?

A ABC já teve um vice-presidente negro, Juliano Moreira, de 1926 a 1929. Ele foi um superpsiquiatra formado pela Faculdade de Medicina da Bahia. Pouca gente sabe disso. No entanto, é fato, ainda temos poucos negros na ABC. Entre os indígenas, temos Davi Kopenawa como membro colaborador. Ele foi eleito em 2021, pelos conhecimentos tradicionais. Estamos melhorando a equidade de gênero – aliás, estamos muito melhor do que academias mais antigas, como a francesa, a alemã e a americana –, mas não atingimos a equidade de raça, é um ponto que eu gostaria de ter melhorado e isso não depende de mim, como presidente.

 

O que é possível fazer?

Como sou presidente, eu não indico, mas peço que os membros indiquem buscando a diversidade e mantendo a qualidade, pois é o que se espera de uma academia. Nós não temos número fixo de vagas, como é a academia de letras ou medicina, mas temos um padrão, os critérios da chamada qualidade científica. Isso é um desafio para mim. Até 2025 – temos agora a indicação de 2024, que toma posse em 2025 – o desafio é saber como faremos para trazer a diversidade racial, que também é importante.

Por outro lado, a universidade ficou mais equilibrada com as ações afirmativas. Não gosto do nome “cota”, parece reserva de mercado. E nem é reserva, é correção de um erro. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. Temos mais pessoas negras e indígenas chegando à universidade e mais negros na pós- graduação também. Estamos chegando lá, mas infelizmente leva um tempo. Estamos também diversificando as regiões do país. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul ainda prevalecem porque são os mais antigos na área científica brasileira, mas acadêmicos do Norte e Nordeste estão chegando também.

 

Há entrada de membros jovens? Como se dá a escolha?

Nós temos o que chamamos de membros afiliados; são jovens até 40 anos. A ideia é incentivar o jovem a se tornar um titular sênior posteriormente, já temos alguns exemplos. Eles ficam membros da ABC por cinco anos e a eleição não é competitiva no âmbito nacional, é por região. Temos seis regiões: Norte, Nordeste – que inclui o Espírito Santo; Centro-Oeste – que inclui Minas Gerais –; a região Sul, com Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, e a Sudeste, com São Paulo e Rio de Janeiro.

Se fizéssemos a escolha dos jovens levando em conta todo o Brasil, teríamos de novo uma representação maior do Sul e do Sudeste. São concedidos prêmios e títulos sempre levando em consideração essas regiões. A divisão de regiões dessa maneira dá oportunidade ao jovem brilhante que está no Norte, fazendo um trabalho magnífico. São concedidos prêmios e títulos sempre levando em consideração essas regiões. Para os mais velhos, os seniores, é considerado o Brasil todo.

 

Essa desigualdade também não está presente na distribuição de bolsas dos órgãos de fomento?

Na distribuição de bolsas de produtividade pode ser. Mas não nas de pós-graduação. Não dá para não ter um percentual alto para São Paulo porque é o estado mais populoso do país. Em relação às bolsas de pós-graduação, se fizer o cálculo per capita, não existe esse desequilíbrio. É importante dizer que o Brasil ainda está muito aquém do número que precisa de bolsas de pós-graduação. Diminuíram, especialmente as de pós-doutorado. Um país que tem 524 anos já deveria saber que não existe economia forte sem educação e ciência. Basta olhar as maiores economias do mundo. Por que Israel é uma potência científica? Porque investe. Em Israel, o investimento é de 5% do PIB, é bastante. No Brasil, fica em torno de 1%. Sempre foi assim. É uma linha reta, às vezes, como um eletrocardiograma: sobe um pouquinho e volta.

O presidente Lula disse que “a ciência está de volta”, mas o problema são os ministérios que cuidam das despesas e o Congresso Nacional, que não veem a destinação de recursos para a ciência como investimento. Essas decisões erradas não afetarão os indivíduos hoje, mas daqui a trinta anos o Brasil terá uma crise social muito maior do que tem hoje, porque não está investindo da maneira como precisa para manter os velhos – esses jovens de hoje serão velhos amanhã –, então, quem vai mantê-los? A curva demográfica brasileira aponta que quase perdemos a janela de oportunidades. Esta é a última janela. A população vai envelhecer, o número de nascimentos está caindo, estamos vivendo mais tempo, maravilha, mas os jovens não querem mais fazer ciência, a sinalização para eles foi muito ruim.

 

Como a senhora vê a questão das bolsas de produtividade negadas às mulheres por causa das gestações?

Depende do que se entende por produtividade. Essa definição terá de ser feita, o mundo está buscando essa definição. Antes, produtividade era quanto maior o impacto, mais produtivo. Hoje está sendo discutido se é isso mesmo ou se existem outros parâmetros. Há pessoas que entram com ações junto ao Ministério Público, questionando o motivo de não obterem bolsas. Então são necessários parâmetros objetivos; se ficarmos nos subjetivos haverá problemas.

A gravidez leva nove meses, após dar à luz, há pelo menos mais um ano para amamentação e cuidados. O CNPq já havia apontado que era preciso considerar, no pedido de bolsa, se há gravidez. Mas não foi imposto, foi recomendado. E existem os Comitês Assessores (CA), são cerca de 50, para as diferentes áreas do conhecimento. Há comitês que levam isso em consideração, e outros não. A mulher ser penalizada porque teve filhos é um absurdo. Isso tem de acabar. Agora o CNPq baixou a regra: todos os comitês têm de levar isso em consideração. Mas estamos melhorando. Para se ter uma ideia, há alguns anos, a jovem que tinha bolsa de mestrado ou doutorado não tinha um tempo a mais para defender a tese ou para a manutenção da bolsa. Agora tem. Melhorou, mas ainda está aquém do que precisamos.

 

Como está a preparação para o S-20?

Temos uma reunião agora em março, no Rio, com representantes das academias de ciências dos países do G-20, que abordará o tema “Ciência para a transformação mundial”. Serão abordados cinco eixos: inteligência artificial – ética, impacto social, regulação e compartilhamento de informação; bioeconomia – levando a um planeta sustentável; processo de transição energética – energias renováveis, considerações sociais e econômicas; desafios da saúde – qualidade e equidade de acesso; e justiça social – promovendo a inclusão, diminuindo a pobreza e as desigualdades. A última reunião acontecerá em julho, para a escrita do documento final, que será entregue aos líderes. O fato de ser entregue aos líderes não significa que as recomendações serão escritas no documento final do G-20, porque há outros grupos, como os de educação e saúde, por exemplo. Quanto mais grupos recomendam aspectos semelhantes, maior a chance de aparecer no documento final.

Faço parte do S-20 desde a Arábia Saudita. Estive na Itália, Indonésia e Índia. Conheço o grupo e a ideia é que saiam as recomendações. Eu espero que algumas dessas recomendações sejam realmente abraçadas por todos os países. No G-7, a ciência já é relevante, então, como o G-20 já inclui o G-7, o mais relevante será direcionado aos demais. Para os países que já são do G-7, eu diria que as recomendações são puxões de orelha. Vários aspectos acerca do desenvolvimento sustentável não são cumpridos pelo G7. Eles valorizam a ciência, mas continuam, por exemplo, com o combustível fóssil. O Brasil praticamente já fez a transição energética [com as hidroelétricas]. Estados Unidos e Europa usam carvão.

 

Especificamente acerca da Inteligência Artificial, o que será debatido ou recomendado?

Um tema importante é que todo mundo está pedindo bancos de dados abertos. A questão é o que será colocado nesses bancos de dados. O Brasil precisa tomar cuidado com o seu banco de dados, que é único, porque poucos países têm a miscigenação e a imigração que tivemos. Outros países tiveram imigração mas não a miscigenação, as pessoas continuam nas comunidades de origem.

 

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Nos EUA, por exemplo, é assim, pouca miscigenação. Então, os bancos de dados de saúde pública do Brasil são tesouros, assim como o banco de dados do SUS acerca da prevalência de doenças. São aspectos que precisam ser muito discutidos porque são dados que para a indústria farmacêutica, por exemplo, são fundamentais. O Brasil é signatário do Open Data, mas o que é esse “open”? Nosso banco de dados em relação à biodiversidade brasileira tem de ser aberto a todo mundo? Eu não sei, tem a ver com soberania. Eu teria restrições. Teremos dados da indústria farmacêutica? Não! É importante compartilhar, mas o quê e com quem? Os EUA não abrem nada.

 

Autor

Sandra Seabra Moreira


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