Educação

Colunista

Daniel Sperb

Consultor em inovação e gestão universitária

Erosão financeira: o poder da direção na transformação digital universitária

Movimento envolve pessoas, cultura e estratégia, alicerçado em valores e objetivos institucionais

Transfomação digital foto: shutterstock

O artigo Desencadeando o valor da transformação digital: caminhos e armadilhas da Deloitte aborda a importância da transformação digital e como ela pode impactar o valor de mercado das empresas no contexto corporativo. Embora o estudo não seja proveniente da área educacional, alguns insights se mostram promissores ao considerar os desafios que enfrentamos na gestão universitária.

A pesquisa original da Deloitte foi baseada em uma análise de 10 anos das divulgações financeiras de mais de 4 mil organizações globais do segmento corporativo. A principal descoberta é que a intencionalidade na execução da estratégia digital é crucial para desbloquear valor. Ou seja, a busca pela intencionalidade exige uma estratégia sistêmica bem definida para amplificar a relevância institucional por meio de fatores essenciais da gestão acadêmica, como os fatores administrativos, acadêmicos-pedagógicos, mercadológicos e estratégicos de inovação.

 

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O estudo é contundente ao afirmar que o ímpeto da alta liderança é um divisor de águas entre o sucesso e o fracasso na transformação digital em uma organização. No contexto universitário, salvo raras exceções, percebe-se grande instabilidade nos discursos sobre modernização, falta de compreensão da tecnologia e sua aplicação.

A pesquisa indica que organizações com lideranças engajadas, que entendem profundamente a tecnologia e sua aplicação estratégica, obtêm resultados significativamente superiores. Ao analisar o contexto educacional superior brasileiro, reconhecemos o mesmo padrão. As IES com melhor performance possuem áreas dedicadas à inovação aberta e produtos digitais. Elas operam com uma abordagem consciente, intencional e transversal da tecnologia.

Portanto, é imperativo que as lideranças acadêmicas estejam totalmente comprometidas e alinhadas com uma jornada projetada de transformação digital. Isso garante não apenas o sucesso mercadológico, mas também acadêmico-pedagógico, administrativo e de inovação.

 

Os três pilares da transformação digital

O estudo oferece um quadro para entender como as empresas dirigem seus esforços de transformação digital e podemos aplicá-lo ao contexto da gestão universitária. Mas antes, um alerta: qualquer semelhança com a maioria dos grandes grupos de educação e algumas raras exceções de IES isoladas não é mera coincidência.

 

1. Estratégia digital e ganhos financeiros

A articulação clara da estratégia digital em divulgações financeiras resultou em avaliações significativamente mais altas para as empresas.

A Deloitte observou que o mercado reconhece e recompensa as empresas que demonstram uma visão digital clara, percebendo o potencial de ganhos financeiros robustos. As empresas que tomam medidas decisivas para modernizar seus negócios em alinhamento com uma visão digital ampla são vistas como líderes em seu setor, independentemente de sua área de atuação.

 

2. Tecnologia alinhada à estratégia e lucratividade

As empresas que evidenciaram um alinhamento entre tecnologia e estratégia em suas divulgações financeiras viram um impacto de avaliação que foi o dobro em comparação com apenas ter uma estratégia digital.

A menção específica de tecnologias avançadas ou emergentes nas divulgações dá aos stakeholders uma visão clara do compromisso da empresa com a inovação. Isso, por sua vez, indica onde a empresa está direcionando seus investimentos significativos, refletindo uma abordagem proativa e voltada para o futuro que promete maiores retornos financeiros.

 

3. Mudança digital e riscos financeiros

Enquanto a estratégia digital e a tecnologia alinhada à estratégia mostraram impactos financeiros positivos, a mudança digital sem uma direção clara apresentou riscos.

A pesquisa revelou que a mera menção de programas de mudança, sem detalhes específicos ou sem ligação com estratégias digitais claras, levou a uma diminuição na capitalização de mercado.

A falta de clareza e propósito na mudança digital pode corroer o valor de mercado existente. A chave para evitar essa erosão financeira é garantir que todas as mudanças estejam alinhadas com uma estratégia clara e bem definida.

Adotar tendências, como métodos ágeis, IA, inovação aberta, M&A, sem uma visão estratégica clara, pode ser um caminho direto para a perda financeira.

 

O papel dos mantenedores, CEO’s, reitores e diretores

A liderança firme e direcionada é essencial para garantir que a transformação digital seja lucrativa e não apenas uma moda passageira.

O estudo encontrou evidências de que a combinação de estratégia digital e investimentos alinhados tecnologicamente sem capacidade de mudança resulta em uma erosão significativa do valor da empresa.

As perdas são 10 vezes maiores do que aquelas observadas com o outro destruidor de valor: a mudança digital por si só. Ou seja, a falta de compreensão de que transformação digital é muito mais transformação do que digital, é muito mais estratégia e inteligência, do que digitalizar processos que nem sequer deveriam existir.

Na verdade, é a combinação mais negativa, representando um risco de 9% de erosão de valor que poderia custar às empresas da Fortune 500 US$ 1,5 trilhão em valor.

Em meio a um cenário digital em constante evolução, o estudo da Deloitte destaca a importância inegável de uma liderança C-level estável e comprometida. As empresas que contam com líderes visionários, que não apenas entendem, mas também estão profundamente comprometidos com a transformação digital, estão posicionadas para colher benefícios financeiros substanciais.

Estas organizações não apenas evitam a erosão de valor, mas também têm o potencial de ampliar significativamente seu valor de mercado. Em um mundo onde a “moda digital” pode ser passageira, é o compromisso firme e a visão clara da liderança que se destacam como os verdadeiros catalisadores do sucesso financeiro sustentável.

Portanto, para as empresas que buscam prosperar na era digital, a mensagem é clara: invista em uma liderança C-level sólida, inspiradora e mantenha-se fiel à sua visão de transformação digital.

 

Não existe transformação digital sem transformação cultural

Antes de apresentar o framework transformacional, é útil tomar como referência insights recentes da McKinsey, que indicam uma mudança geracional na adoção de tecnologias digitais, especialmente no campo da IA generativa. Segundo o estudo da consultoria, essas novas capacidades tecnológicas podem agregar entre US$ 2,6 trilhões e US$ 4,4 trilhões à economia global por ano, reforçando que não se trata apenas de incorporar ferramentas, mas de direcioná-las estrategicamente.

No contexto das instituições de ensino superior, a lógica é semelhante: não basta implementar tecnologias emergentes; é preciso alinhar soluções digitais à missão institucional, fortalecendo processos de governança, desenvolvendo competências internas e assegurando impactos mensuráveis no ensino, pesquisa e extensão. A inspiração nos modelos apresentados pela McKinsey e adaptados ao setor educacional, orienta o framework proposto a seguir.

Em suma, a abordagem aqui apresentada visa fornecer um roteiro prático, partindo de diretrizes claras e metas bem definidas. Assim, as IES podem assumir o controle de sua transformação digital, aproveitar a curva de valor da IA e de outras inovações, e construir uma base sólida para enfrentar os desafios da educação contemporânea. O resultado é um caminho mais estruturado, com impacto real e sustentável, e não apenas o uso pontual de tecnologia.

A verdadeira transformação digital nas IES não se resume a adotar tecnologias emergentes, mas sim a repensar estratégias, processos, culturas e competências para responder de forma ágil aos desafios de um ambiente em constante evolução. Trata-se, antes de tudo, de transformação organizacional e cultural, onde tecnologias como IA, aparecem como ferramentas habilitadoras, e não como fins em si mesmas.

 

Um framework para a transformação digital

O framework abaixo, antes de ser tecnológico, é fundamentalmente estratégico. Ele oferece um caminho inicial para que as IES estabeleçam bases sólidas, criando diretrizes e um ambiente favorável à mudança, permitindo que a incorporação de soluções digitais, inclusive de IA, se dê sobre alicerces firmes e coerentes com a missão educacional:

 

Passo 1. Definir postura e diretrizes de transformação digital

Comece estabelecendo uma visão clara e inspiradora do que a transformação digital significa para a instituição. Isso inclui alinhar objetivos pedagógicos, metas de pesquisa, estratégias de extensão e princípios administrativos ao contexto tecnológico. A IA pode surgir como uma das ferramentas neste repertório, mas só após a instituição ter clareza sobre seus valores e metas.

 

Passo 2. Identificar casos de usos estratégicos e de alto impacto

Antes de focar em tecnologias específicas, mapeie as áreas onde a transformação digital pode trazer ganhos tangíveis: melhoria na experiência do estudante, otimização de processos acadêmico-administrativos, expansão do impacto da pesquisa ou fortalecimento da presença institucional. A IA poderá apoiar nessas frentes, mas o ponto de partida é compreender as prioridades institucionais e os resultados esperados.

 

Passo 3. Reimaginar a função tecnológica

A tecnologia não é um adendo, mas parte integrante da estratégia. É necessário repensar como a TI se encaixa na governança, como as decisões tecnológicas se alinham à missão institucional e como as soluções digitais podem transformar a experiência acadêmica. A IA, nesse contexto, torna-se um elemento entre vários outros que potencializam o alcance da missão, visão e consolidam os valores institucionais.

 

Passo 4. Desenvolver recursos e capacidades, não apenas ferramentas

A transformação não é um pacote de softwares, mas um conjunto de competências, processos e diretrizes integradas. Invista na criação de uma base sólida de recursos internos: competências digitais entre docentes e técnicos, processos de governança clara, políticas de ética e privacidade, além da infraestrutura necessária. A IA, se incorporada, deverá encontrar um ecossistema preparado para absorver e multiplicar seu valor, e não um cenário fragmentado.

 

Passo 5. Mapear a integração com sistemas existentes

A transformação digital depende de uma visão sistêmica. Antes de adotar novas soluções, sejam elas plataformas colaborativas ou ferramentas de analytics com IA, é preciso entender a arquitetura atual, as necessidades de integrações entre sistemas e os fluxos de dados. Assim, a introdução de novas tecnologias gera sinergia, eficiência e ganhos cumulativos.

 

Passo 6. Atualizar a arquitetura de dados e padrões de interoperabilidade

Dados são o combustível da transformação digital. Estruture políticas de coleta, qualidade, segurança e interoperabilidade dos dados. Este é o alicerce para, mais tarde, aplicar ferramentas avançadas, inclusive IA, que exploram o valor desses dados para gerar insights, apoiar a tomada de decisões e acelerar a inovação. Não cometa a gafe de falar em IA sem uma arquitetura de dados estabelecida.

 

Passo 7. Formar uma equipe central e multifuncional de transformação

O processo não pode depender apenas de um indivíduo ou de um departamento isolado. Dedique uma equipe capacitada, diversa e central na estrutura institucional, capaz de compreender tanto o lado humano quanto o tecnológico da mudança. Esse time orquestrará esforços, definirá prioridades, monitorará resultados e impulsionará a adoção estratégica de soluções digitais, incluindo IA, de forma harmônica e sustentada.

 

Passo 8. Desenvolver capacitação contínua

A transformação digital é contínua, assim como a necessidade de aprendizagem. Invista no desenvolvimento profissional de docentes, gestores, equipes de TI e estudantes, promovendo uma cultura de atualização constante. A IA, nesse sentido, aparece como uma nova língua” digital a ser aprendida, mas sempre inserida num contexto mais amplo de desenvolvimento humano e institucional.

 

Passo 9. Avaliar, revisar e ajustar políticas e práticas de uso

A transformação não é um evento pontual, mas um ciclo dinâmico. Acompanhe regularmente resultados, ouça a comunidade acadêmica, análise indicadores de desempenho, considere novas demandas e tecnologias emergentes. Ajuste as políticas, revise processos e refine a estratégia. A introdução gradual e responsável de soluções de IA, quando alinhada a esta lógica, garante que a tecnologia esteja sempre a serviço da missão institucional, e não o inverso.

Em suma, este framework transformacional convida as IES a começar pelo porquê” e pelo como” antes de chegarem ao com o quê”. A transformação digital é, essencialmente, um movimento que envolve pessoas, cultura e estratégia, alicerçado em valores e objetivos institucionais. Somente sobre essa base robusta as novas tecnologias, incluindo a IA, poderão florescer.

Assim, o resultado será não apenas uma IES mais digital”, mas uma instituição mais adaptativa, inclusiva, inspiradora, eficiente e preparada para o mundo que não é mais apenas volátil, incerto, complexo e ambíguo, mas também frágil, ansioso, não linear e incompreensível.

 

Por: Daniel Sperb | 10/12/2024


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