NOTÍCIA
O presidente do CNPq, Ricardo Galvão, fala do repatriamento de pesquisadores brasileiros, da parceria China/Brasil e do cuidado ao negociar com estrangeiros
Publicado em 10/06/2025
Filho e neto de engenheiros, as ciências exatas desde sempre despontaram como um caminho. No ensino médio, George Gamow e seu livro de física moderna – com detalhes acerca da energia produzida nas estrelas – fizeram Ricardo Galvão, atual presidente do CNPq, se interessar pela física e a carreira científica. Mineiro, desde os 11 anos residia com a família em Niterói. Nos anos 60, estudar do outro lado da Baía da Guanabara, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ), custava caro. Galvão decidiu-se pela engenharia na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Lá, o professor Bernhard Gross orientou Galvão a acabar o curso e depois rumar para a física na pós-graduação. O mestrado na Unicamp ainda foi na engenharia, mas o doutorado, no departamento de energia nuclear do Massachusetts Institute of Technology (MIT), enfim, foi em física de plasmas aplicada, e a livre-docência, pela USP, em física experimental. É professor aposentado do Departamento de Física da USP.
Além da situação complexa da pesquisa mundial com o desmantelamento de recursos do governo Trump, Galvão fala do Programa Mais Conhecimento para a repatriação de pesquisadores brasileiros, lançado em 2024 pelo CNPq antes mesmo da atual hecatombe nos EUA. As parcerias internacionais com a China nos projetos de pesquisas aplicadas são detalhadas por ele, que alerta: nas negociações, não se pode ser ingênuo com um país que comercializa há mais de cinco mil anos. Também na recente criação do Centro Franco-Brasileiro da Biodiversidade Amazônica, na Guiana Francesa, as discussões com os franceses não foram fáceis.
Ricardo Galvão foi também diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), presidente da Sociedade Brasileira de Física e membro do Conselho Científico da Sociedade Europeia de Física, ambos de 2013 a 2016. É presidente do CNPq desde 2023 e delegado brasileiro no Conselho do CERN, a Organização Europeia para a Investigação Nuclear.
No primeiro mandato, Trump já foi um pouco nessa direção. Um ano e meio depois que ele assumiu, recebi o presidente do MIT – porque eles mantêm contato com ex-alunos – pedindo apoio para suporte de estudantes chineses e já havia restrições a eles. Mas agora ele veio de uma forma violenta. Marco Rubio [secretário de Estado dos EUA] tem uma política forte e já cancelou mais de 500 vistos de estudantes e pesquisadores estrangeiros no país. O MIT, dia 15 passado [abril], teve vistos de nove estudantes estrangeiros cancelados sem nenhuma razão.
MIT e Harvard estão cada vez mais preocupados. Além do corte de verbas, o discurso do Trump é que essas universidades têm política antissemita, mas isso não passa de um disfarce, uma política que chamo de uma estultice, uma ignorância predatória, e não sei nem o quanto é programado, o quanto é estultice pura. Ele é uma pessoa completamente desqualificada.
Claro que isso terá consequências enormes. Primeiramente, para os EUA. Por exemplo, fiz o doutorado no MIT, de 72 a 76, e cerca de 40% dos meus colegas eram estrangeiros. Vários deles permaneceram nos EUA e hoje são pesquisadores renomados, contribuindo para o avanço da ciência americana e mundial. Os EUA se beneficiaram muito com isso. Eu mesmo fui orientado no MIT pelo professor Bruno Coppi, um italiano trazido da Itália como professor titular porque era um jovem expoente. Muito da ciência americana foi feita valorizando estrangeiros. Primeiro, os EUA vão sofrer.
Mas tenho certa esperança, conheço bem a academia americana – eles vão reagir fortemente. E as reações já estamos vendo. Quando uma instituição como a Harvard fala, mesmo entre os republicanos, isso tem uma repercussão enorme. Estou com esperança de que essa reação vai levar a uma mudança de política.
Por outro lado, afeta muito a ciência internacional, porque há uma colaboração forte dos EUA. Agora, a China se iguala aos EUA na relevância científica, mas o mundo, hoje, não está sabendo o que fazer. Acabei de ter uma reunião, sou o representante científico brasileiro no CERN, em Genebra. A colaboração deles com os americanos é fortíssima e eles não estão sabendo o que fazer ainda. O Trump também tem uma mentalidade de jogador de pôquer – ameaça, volta atrás. É difícil saber quais as consequências.
O motivo principal da nossa política é o seguinte: de 2015 até 2024, estimamos que o Brasil tenha enviado algo da ordem de 30 mil bolsistas para o exterior, por meio do CNPq, Capes e fundações estaduais. E quando eles iam e ganhavam bolsa, tinham a obrigatoriedade de retornar ao Brasil e aqui permanecer pelo período em que tiveram a bolsa no exterior. Esse é o compromisso de todo aluno que vai para fora, inclusive por meio do Ciência sem Fronteiras, por exemplo. Mas ao tentar retornar não havia posições no Brasil. Aliás, sou muito crítico do Ciência sem Fronteiras nesse ponto, de mandar um monte de gente sem pensar nas condições de retorno. Foi um erro a maneira como foi implementado.
Isso foi feito e os estudantes que não retornavam eram processados pelo governo brasileiro. Quando cheguei ao CNPq, o primeiro processo que assinei o fiz com lágrimas nos olhos. Estava processando um rapaz que tentou voltar para o Brasil, mas não conseguiu emprego; tentou uma bolsa de pós-doutoramento do CNPq e não conseguiu. E teve uma oferta de emprego em Londres. Nós o processamos em R$ 800 mil.
Primeiro ponto, tinha essa situação kafkiana – nós mandamos, eles tinham de retornar e não tinham empregos. E o segundo, o mais importante para nós, é que estamos necessitando muito desses doutores que foram para fora. Eles têm alto conhecimento, o Brasil paga para eles irem e não os traz de volta?
Nesse programa, houve duas modalidades. Uma para atrair quem quisesse retornar, e outra para quem estivesse permanente, não fosse voltar, mas que quisesse fazer rede de colaboração com brasileiros. Um programa trocando gente, indo e voltando.
O programa que lançamos foi muito criticado porque propusemos trazer os pesquisadores em condições excepcionais. São dois problemas distintos – fixar pesquisadores aqui e trazer as competências dos que estão fora.
O valor [de R$ 10 mil a R$ 13 mil por mês] foi estimado pelo valor médio de um bolsista de pós-doutorado na França. Pegamos o valor médio, senão seria ridículo, não teria como trazê-los. E demos mais recursos [R$ 400 mil de capital e custeio e até R$ 120 mil para viagens de trabalho]. Disseram, inclusive, que mesmo com esse valor não haveria interesse de brasileiros retornarem. Mas tivemos 1.500 propostas, demos 514 bolsas.
Quando o presidente Lula esteve no Japão, recebi do Ministério Exterior de lá a informação de 60 brasileiros querendo retornar para o Brasil e que ainda não sabiam do programa. E tudo gente de altíssimo nível. Tivemos propostas de 56 países. O mais interessante: tivemos propostas de 133 indústrias brasileiras que querem atrair doutores de volta para cá. Precisamos tirar da nossa cabeça a ideia de formar doutores só para ensinar em universidades. Temos de colocá-los nas empresas, no desenvolvimento, na inovação. Isso é muito importante.
Esses recursos vêm do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e são definidos no chamado Plano Anual de Investimentos, que será discutido no final de maio. Estudamos agora não só relançar o programa numa nova base, mas fazer a segunda parte do programa para os brasileiros que estão aqui e reclamaram de não serem atendidos. Vamos alargar o programa para a fixação no Brasil. Serão bolsas especiais aos que estão aqui, mas em áreas estratégicas, áreas que serão definidas também na elaboração do Plano Nacional de Investimentos.
A parceria com a China começou fortemente no final da década de 80, através do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE). Antes, na década de 70, os satélites Landsat, americanos, foram lançados para fazer observação da Terra. O diretor e fundador do INPE, Fernando de Mendonça, uma pessoa com uma visão espetacular, viu que a aplicação espacial do satélite seria muito relevante. E colocou o Brasil como um dos membros de utilização das imagens do Landsat. Foi quando começou todo esse monitoramento da Amazônia. Às vezes as pessoas não sabem, mas todo o sistema de análise de imagens de satélite que nós utilizamos é totalmente brasileiro e tudo foi desenvolvido no INPE.
Daí os chineses vieram para o Brasil, no INPE, para usar esses códigos, aprender. Surgiu, então, a ideia de um programa conjunto Brasil-China, envolvendo o INPE, para desenvolver os satélites de observação da Terra. Esse foi o programa CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite), iniciado em 1988. E nos anos 90 começamos a lançar satélites. Já lançamos seis satélites juntos, todos feitos com a parceria Brasil-China. No começo, o Brasil produzia só 20% dos satélites, os chineses o restante. Fazíamos a parte dos softwares. Agora, os satélites são produzidos 50%-50%. É uma parceria muito produtiva, exitosa.
Mas, na verdade, acabou envolvendo empresas, porque a política nacional brasileira de uso do espaço prevê que todo o desenvolvimento tem de ser feito junto com empresas. Por exemplo, os painéis solares que recebem energia por satélite são feitos com células fotovoltaicas que os chineses produzem, mas o painel é feito aqui no Brasil, por startup brasileira. Esses painéis proporcionaram tanto êxito para as empresas brasileiras que são vendidos até para a Alemanha.
A China tem uma política de longo prazo para aquilo que eles julgam que é preciso ter domínio soberano, porque é estratégico. Eles não têm mentalidade mais capitalista e põem dinheiro no que tem de ser feito, independentemente se dá lucro ou não. E o ponto interessante é que, apesar do sistema socialista, eles incentivam o máximo possível as empresas deles, e não apenas as estatais. E eles têm um sistema interessante de prospecção. Há institutos que vão aos laboratórios de pesquisa e fazem a prospecção do que está sendo produzido e pode ser propositivo.
Muitas vezes, falam que o pesquisador brasileiro só quer publicar artigos e não se preocupa com a aplicação. Os pesquisadores chineses também são assim. Mas a China tem um pessoal intermediário que vai aos laboratórios e faz a prospecção e a transição, faz a pesquisa passar pelo “vale da morte”.
Há uma medida para saber o quanto uma coisa está pronta para o setor produtivo ou, em inglês, readiness label. Para isso, há números: vai de um a nove; até três é quando está no setor acadêmico, em desenvolvimento; a partir de seis até nove é quando segue para o setor produtivo, com as empresas entrando, fazendo provas de conceito, para aquilo virar um produto. O “vale da morte” é onde as ideias morrem porque não há capital, investimento suficiente para transformar aquilo em produto. E não cabe a uma instituição de pesquisa fazer isso.
No CNPq, trabalhamos bastante com o setor empresarial. Ouço essas críticas e elas são erradas. Não cabe a um professor da universidade se preocupar com um produto. Isso é a empresa que deve fazer. Mas esse contato entre empresa e universidade é fraco no Brasil. Já os chineses se preocupam muito com isso.
Sim. Eles têm uma visão muito ampla e não têm medo de trabalhar com empresas estrangeiras. Mas é preciso tomar cuidado. Os chineses são comerciantes com mais de cinco mil anos de experiência. Então, ao lidar com eles, vejo muita ingenuidade no Brasil. Fui diretor do INPE por três anos. No programa de satélites, as discussões com eles eram sempre muito duras. Eles não estão negociando conosco porque são bonzinhos ou para ajudar o Brasil. Eles querem ter um produto que interesse a eles.
Lançamos essa chamada e estamos no processo de receber as propostas. Na verdade, para a Amazônia esse é o terceiro projeto que fazemos. No ano passado, fizemos um especial com recursos de R$ 300 milhões para grupos de pesquisas na Amazônia. Fizemos um segundo, de R$ 70 milhões, e agora temos este, de R$ 33,5 milhões para colaborações nos países pan-amazônicos.
Além disso, estive há um mês na Guiana Francesa, onde o governo está consolidando uma colaboração que foi discutida pela primeira vez em 2012, mas, com a vinda de Macron para cá em março, o presidente Lula deu a ordem de estabelecer o Centro Franco-Brasileiro da Biodiversidade Amazônica, fixando principalmente a Guiana e o Amapá, que são próximos, e outras regiões da Amazônia. É uma rede de universidades que participam deste centro, em que há um diretor brasileiro e um francês. Será uma grande conquista.
Entretanto, outra vez, farei um alerta: finalmente conseguimos finalizar esse projeto em Cayenne, mas a discussão com os franceses demorou muito. A questão foi a propriedade intelectual. A ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, queria, corretamente, que fosse bem detalhada a questão da propriedade intelectual, pois estávamos falando da biodiversidade da Amazônia. Por exemplo, em produtos produzidos com açaí, o Brasil tem quatro patentes e a França, 14. E os franceses não queriam esse item da propriedade intelectual. Então, de novo, nessas colaborações internacionais, não podemos ser ingênuos. Foi uma discussão muito forte, finalmente chegamos a um acordo, respeitando as leis. Às vezes vejo colegas meus, cientistas, muito bem intencionados, com a alma aberta, mas são inocentes nessa questão de propriedade intelectual.