NOTÍCIA
O crescimento das graduações em informática é fenômeno consistente no mercado todo. Falta acertar o compasso entre formação e mercado
Publicado em 05/09/2023
Pela primeira vez em mais de 50 anos, a Universidade da Califórnia em Berkeley, no Vale do Silício, abriu uma nova faculdade, vocacionada para cursos de TI. A criação do College of Computing, Data Science, and Society (CDSS) vai dar mais autonomia para a abertura de novos cursos na área, o ingresso de mais estudantes e para acertos de novas parcerias, numa demonstração inequívoca do prestígio que esse campo do conhecimento vem ganhando na academia. O crescimento das graduações em áreas da informática não é exatamente uma surpresa, mas a novidade em Berkeley demonstra que esse é um fenômeno consistente e que ainda tem muito espaço para se desenvolver.
“A faculdade vai ajudar a atender à nova onda de interesse por parte dos estudantes do nosso campus por formação nessas áreas”, afirma Tiffany Lohwater, diretora de comunicações da CDSS. Embora os números oficiais ainda não estejam fechados, no ano letivo que se encerrou em julho de 2023, o curso de ciências da computação deve ter, pela primeira vez, o maior número de graduados em Berkeley – cerca de 20% dos formados na instituição. “Ser uma faculdade também facilita novas parcerias com outros departamentos, faculdades e instituições, além de abrir oportunidades de arrecadação de fundos para pesquisas e inovações”, explica a diretora. Na Universidade Stanford, outra instituição de referência americana, cerca de 16% dos formados saem com diplomas na área da informática. Lá, a grande explosão nos números se deu entre 2008 e 2016, com um aumento de 350% no número de matrículas. Nos EUA como um todo, no ano de 2021 ciências da computação já foi o quarto curso com mais gente formada, de acordo com o Centro Nacional para Estatísticas Educacionais (NCES). Entre 2010 e 2020, a área teve um crescimento no número de graduados de 187%.
Longe de ser uma particularidade americana recente, o aumento das graduações em cursos ligados à informática tem se mostrado consistente ao longo das últimas décadas em todo o globo. Na União Europeia (UE), os dados oficiais fornecidos pela agência oficial de estatísticas do bloco, a Eurostat, agrupam todos os cursos de STEM (ciências, tecnologia, matemática e engenharia). Os dados de 2020 mostram que o número de pessoas dos 20 aos 29 anos com formação superior na área saltou de 18 por cada mil para 21 por mil, num intervalo de oito anos.
Talvez o avanço mais radical, contudo, seja o registrado na Ásia. Na China, o volume total de alunos de graduação tem aumentado constantemente ano a ano. Apesar de ser mais difícil ter acesso a números oficiais, dados de um mapeamento feito pelo Centro Dinamarca, em Shanghai, apontam que, apenas entre 2017 e 2021, o número de alunos de graduação em ciência da computação no país aumentou 36,5% – em 2021, o número de alunos de graduação em ciência da computação deve ter chegado a 360 mil.
Como nas últimas décadas a China experimentou uma demanda crescente por jovens talentos no setor, o governo de Pequim tem investido fortemente na construção de uma força acadêmica e de inovação. Não por acaso, no final de 2021, a China ocupava o primeiro lugar mundial em citações de publicações em ciência da computação. Ou seja, não se trata apenas de volume, mas também de qualidade. De fato, a Ásia tem despontado tanto pelo volume quanto pela qualidade da formação que oferece. Entre os 20 melhores cursos de ciências da computação do mundo segundo o ranking The Times Higher Education, dois são de instituições chinesas, dois de Cingapura.
Os especialistas na área são unânimes em defender que, em qualquer lugar do mundo, a oferta de cursos é mais do que justificada pelas demandas atuais e futuras da sociedade. Há procura tanto do lado de estudantes, que desejam tais diplomas para conseguirem bons trabalhos, quanto do mercado de trabalho, que precisa de profissionais capacitados, críticos e éticos. “Nossos estudantes vão aprender a desenvolver ferramentas inovadoras para lidar com os maiores desafios da sociedade, mas sempre levando em consideração as consequências éticas não intencionais das soluções propostas”, garante a diretora de Berkeley.
Três cursos vão ser oferecidos inicialmente na nova faculdade em Berkeley: ciências da computação, ciências de dados e estatística. Além de aulas e teoria, os alunos vão ter a oportunidade, desde cedo, de pensar nas práticas do mundo do trabalho: a faculdade promete dar apoio com aconselhamento de carreira e direcionamento a estágios para facilitar a transição para o mercado, graças a parcerias com a indústria, agências do governo e outras instituições de ensino.
A interseccionalidade com outras áreas acadêmicas é também um dos pilares da instituição, permitindo pesquisas em conjunto com biologia, saúde, engenharia elétrica, materiais, ciências sociais, etc. “Essa nova faculdade está reimaginando a colaboração inclusiva, para lidar com as dimensões técnicas, científicas, sociais e humanas dos desafios urgentes na saúde e biomedicina, no clima e sustentabilidade, do bem-estar e justiça social. A CDSS considera de forma crítica os impactos profundos da computação e análise de dados em um mundo digital em rápida evolução”, explica a diretora.
A necessidade geral de bons profissionais de TI está espalhada por todo o mundo, o que coloca esse desafio também ao Brasil. Embora as instituições do país tenham aberto mais vagas a cada ano, isso não tem bastado, porque um avanço real esbarra na alta taxa de desistência. Segundo o Mapa do Ensino Superior do Brasil, do Instituto Semesp, 66,5% deixam os cursos da área antes de completá-lo. Entre os mais altos índices de desistência estão design de games (75,9%) e banco de dados EAD (72,7%). Na média geral de todos os cursos, a desistência é de 55,5%.
Para tentar contrariar as estatísticas, alguns novos cursos de computação têm sido desenhados já com estratégias para dar suporte aos estudantes. O Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), tradicional nos cursos de engenharia, recebeu seus primeiros alunos de ciências da computação em 2022. Como teve forte aceitação, já no próximo ano a instituição se prepara para abrir mais uma graduação na área. Contudo, com alguns cuidados para evitar as saídas antecipadas. Para lidar com a falta de conhecimentos básicos do ensino médio, a Mauá aposta em monitorias gratuitas – muitas vezes, os estudantes desistem por não conseguir acompanhar as matérias. “Em disciplinas nas quais os alunos têm mais dificuldade, como em cálculos e geometria analítica, a gente põe monitores para ajudar, com horários na semana inteira. São alunos mais velhos que vão auxiliar quem tiver dificuldade”, explica Ana Paula Gonçalves Serra, coordenadora do curso.
Outra preocupação é ter um professor pró-ximo ao aluno, que possa perceber se há frustrações e oferecer caminhos viáveis para resolvê-las. “No primeiro ano, todos têm um horário de aula para as mentorias. Esse aluno é acompanhado por um professor, que vai dando elementos para ele se sentir acolhido e entender se há dificuldades. Se for o caso, o estudante pode mudar de curso”, cita a coordenadora. Segundo ela, os jovens chegam à faculdade com pouco conhecimento sobre o que é o curso: é comum decidirem pela área apenas porque gostam de jogar, ou por não saberem o que querem e apenas apostarem em um campo que tem boa empregabilidade.
Por fim, é preciso conciliar teoria com prática. “A parte prática é muito importante, ter contato com empresas, fazer projetos, colocar a mão na massa, mas há cursos que são só palestras transmitidas”, afirma a coordenadora. A prática também pode chegar por meio de disciplinas eletivas que oferecem certificações em ferramentas comuns no mercado de trabalho.
Mas o desenho dos cursos deve ainda olhar para além do que o mercado quer de forma imediatista. A função das IES não deve ser simplesmente formar pessoas para executar tarefas necessárias, mas pessoas que serão líderes e terão capacidade até mesmo de contestar práticas atuais e promover mudanças. “Uma parte da mão de obra que o mercado pede é suprida por formações não formais, cursos livres. Algumas empresas que fazem formações treinam para uma posição. Mas é algo técnico para vagas operacionais, e não para vagas estratégicas”, cita Fábio de Miranda, coordenador da graduação em ciências da computação do Insper.
Mesmo as ferramentas de inteligência artificial podem ajudar a desacelerar o crescimento do déficit de profissionais. “Os sistemas não vão dar respostas prontas, a não ser a problemas simples. Ainda vamos precisar de programador que saiba pedir detalhadamente o que quer, mas os estudos indicam um ganho de produtividade”, explica Miranda.
Assim como a Mauá, o Insper também abriu sua primeira turma de ciências da computação em 2022 e teve ótima aceitação por parte dos estudantes. Foram abertas 100 vagas e a concorrência já está semelhante à do curso de engenharia, que tem nove anos de existência. A instituição também aposta em reforçar a base de conhecimentos para evitar que estudantes desistam por não serem capazes de acompanhar as matérias. “Fazemos trabalho de diagnóstico, com prova; dependendo das notas, os alunos têm uma disciplina de revisão de matemática. Pegamos ainda um pouco o efeito da pandemia, nossos estudantes fizeram parte do ensino médio a distância”, relata.
Estrategicamente, o país e as instituições têm de preparar as próximas gerações para o mundo digital – e não apenas os estudantes que decidem estudar ciências da computação. Essa mudança generalizada nas carreiras é algo que muitas instituições do exterior estão oferecendo. A Universidade Illinois tem um programa básico de ciências da computação para estudantes de todos os demais cursos, com um pacote de dez disciplinas. O MIT criou um curso que mescla economia com ciências da computação. “Todas as carreiras vão virar novas versões do que eram, todos precisam acompanhar as ciências da computação. O Insper oferece um curso de data science para estudantes da economia e da administração”, diz Miranda.
Talvez, de alguma forma, a computação esteja mesmo destinada a todos.