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Medida para a infância

Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) estuda introduzir modelo polêmico de avaliação para a educação infantil; iniciativa encontra pouca interlocução com o Ministério da Educação e com entidades representativas da área

Publicado em 29/02/2012

por Marta Avancini





Gustavo Morita

É possível realizar, na educação infantil, uma avaliação de larga escala a exemplo do que ocorre no ensino fundamental e no médio? Que aporte esse tipo de instrumento pode trazer às políticas educacionais? Questões como essas estão mobilizando pesquisadores, profissionais e movimentos em defesa dessa etapa educacional desde que a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) anunciou, em outubro de 2011, a intenção de realizar uma avaliação de caráter nacional do progresso do desenvolvimento das crianças de 0 a 3 anos.


A iniciativa faz parte do “Programa Único de Atenção Integral à Primeira Infância”, em formatação no âmbito da SAE, cujo objetivo é integrar e articular as políticas de saúde, educação, esporte e assistência social para a população de 0 a 6 anos. Nesse contexto, a avaliação está sendo apresentada como um instrumento de subsídio para políticas públicas. A ferramenta em estudo pela SAE é o chamado Ages & Stages Questionnaires-3 (ASQ-3) – ou Questionário Idades e Estágios, numa tradução livre para a língua portuguesa. Criado nos EUA, mais especificamente na Universidade de Oregon, o ASQ-3 é um screening test, um teste de triagem, comparável, em teoria, aos testes de triagem de audição e visão, realizados na área da saúde. Seu objetivo é avaliar o desenvolvimento de crianças de 0 a 5 anos em cinco dimensões:  comunicação, coordenação motora ampla, coordenação motora fina, resolução de problemas, pessoal e social.


O teste foi adaptado para o Brasil em 2010 e aplicado no ano seguinte em 46 mil crianças de creches municipais e conveniadas sob responsabilidade da secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro, através de uma parceria com a SAE. Em 2011, a avaliação foi repetida, incluindo, dessa vez, as escolas de educação infantil. A ideia de usar instrumentos como o ASQ-3 renovou uma antiga polêmica entre duas visões de desenvolvimento infantil, que trazem os devidos reflexos para o debate sobre as políticas destinadas à primeira infância: de um lado, estão aqueles que priorizam a criança em suas interações com o mundo e a sociedade; de outro, aqueles que buscam as regularidades e os padrões estatisticamente mensuráveis como parâmetro para ações e programas.


Criança ideal x criança real
O cerne do debate é a validade e adequação do sistema de testagem. Os críticos consideram o modelo proposto inadequado porque olha para a criança enquanto indivíduo, entrando em choque com as orientações para esta etapa educacional, que enfocam a necessidade de assegurar às crianças o acesso à educação de qualidade. Essa é a tônica das Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil (1999), dos Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006) e dos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil (2009). “Da maneira como está sendo apresentada, a iniciativa é um retrocesso a uma matriz da década de 50 que enxerga a criança universal, isolada do contexto em que ela vive e que, por isso, não existe na realidade”, defende Maria Letícia Nascimento, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “Já sabemos que a cultura tem um peso fundamental no desenvolvimento. Esses testes enxergam o modelo, não a criança”.


O problema é que instrumentos como o ASQ-3 tendem a uma visão de desenvolvimento linear, ascendente e contínuo no tempo, associando habilidades e comportamentos às idades e estabelecendo estágios comuns a todas as crianças. Vital Didonet, professor e assessor da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), enxerga que a avaliação traz o risco de que os alunos sejam rotulados. “Esse bloco de características forma um ”padrão” frente ao qual eles são descritos como atrasados, ajustados ou adiantados”, explica. Por isso, o registro pontual de um comportamento inadequado, de uma limitação ou de uma falta de habilidade pode ser tão inócuo e, mais do que isso, prejudicial, gerando situações de discriminação e exclusão. “O desenvolvimento não é linear, mas em ciclos. Por vezes, uma criança avança mais em uma área e menos em outra e depois inverte”, explica Maria Thereza Marcílio, coordenadora executiva da RNPI. “Uma escala de desenvolvimento universal perde de vista que as condições, os estímulos, as interações sociais e com o ambiente variam muito.”


Em outros termos, para essa corrente, o amadurecimento neurológico não é, sozinho, o fator determinante para o desenvolvimento, nem para a aprendizagem. “Na saúde, esse tipo de instrumento é usado para detectar doenças ou problemas de saúde”, assinala Maria Thereza. No entanto, defende a pedagoga, mesmo na saúde, são usados indicadores que não se restringem a aspectos individuais. A Pastoral da Criança, por exemplo, associa os indicadores de saúde aos Indicadores de Oportunidades e Conquistas, a fim de orientar as famílias no acompanhamento do desenvolvimento dos filhos: se a criança tem certidão de nascimento (1 mês), se as pessoas da família incentivam a criança a brincar com objetos (6-8 meses) ou se as pessoas da família têm oportunidade de ler para a criança (4 anos).


ASQ: antecipando problemas
Segundo Jane Squires, doutora em Intervenção Precoce e Educação Especial pela Universidade de Oregon e uma das criadoras do teste, o ASQ-3 é um procedimento para diagnóstico inicial de problemas que exijam uma análise mais aprofundada ou cuidados no âmbito da educação especial, da saúde ou da saúde mental. Jane, que dirige o Center for Excellence in Development Disabilities Education, da Universidade do Oregon, esteve no Brasil em dezembro de 2011 para participar de uma discussão sobre o instrumento, promovida pela SAE.  Na ocasião, ela apresentou a metodologia de avaliação do ASQ: em 30 questões, o teste avalia habilidades ligadas às dimensões citadas anteriormente. Aos 5 anos, a versão norte-americana da prova investiga, dentre outros aspectos, se a criança é capaz de construir frases com quatro ou cinco palavras (comunicação), se ela é capaz de ficar em um pé só por 5 segundos, sem se desequilibrar (coordenação motora ampla) ou se consegue lavar as mãos com água e sabão sozinha (pessoal e social).


O psicólogo e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Alberto Filgueiras, responsável pela adaptação do ASQ para a realidade brasileira, reitera sua relevância para as políticas educacionais para a primeira infância. Sua posição se sustenta na solidez dos questionários do ponto de vista estatístico, o que permite que eles sinalizem com uma margem de segurança de 95% os problemas e os potenciais das crianças. “É um instrumento fundamentado na neurociência, capaz de orientar políticas para favorecer a aprendizagem”, analisa Filgueiras, que estuda o ASQ há quase dez anos e o elegeu como tema de sua dissertação de mestrado, defendida na PUC-Rio em 2011. Ele também participou da aplicação do teste no Rio de Janeiro. “O teste pode ajudar a evitar a situação atual, na qual muitos alunos atingem o final do ensino fundamental ou mesmo o médio escrevendo precariamente ou com dificuldade para avançar nos estudos.” Dessa forma, conclui, o país otimiza o uso de seus recursos e prepara  melhor as crianças para o exercício da cidadania no futuro.








Gustavo Morita
Um dos aspectos medidos pelo teste é a habilidade da criança de lavar as mãos com água e sabonete sozinha
Desconexão
Um alvo de crítica, no entanto, é a ausência de interface da iniciativa com a educação. O Ministério da Educação (MEC)  – especificamente a Secretaria de Educação Básica (SEB) – e entidades representativas da área não têm participado ativamente da formatação da proposta. “É estranho que a avaliação esteja sendo pensada sem interlocução com as políticas e ações estabelecidas, sem um diálogo com os atores da área da educação, que é a responsável pelas creches e escolas infantis”, pontua a presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Cleuza Repulho.


Além da falta de interlocução, o MEC parece estar avançando num caminho próprio, com a constituição, em dezembro de 2011, de um grupo de especialistas para elaborar uma proposta de avaliação para a educação infantil. A reportagem de Educação procurou a assessoria de imprensa do MEC por telefone e e-mail, solicitando informações sobre a participação e a opinião do Ministério acerca da iniciativa da SAE. A assessoria enviou algumas informações sobre o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos da Rede Escolar Pública de Educação Infantil (ProInfância), e respondeu, por e-mail, que não há informações detalhadas no MEC sobre a ação da SAE.


A questão da oferta
Embora o objetivo do ASQ-3 não seja avaliar política e sim funcionar como um instrumento de monitoramento para subsidiar ações de governo, os educadores consideram que, na educação infantil, a atenção dos gestores deve recair sobre as políticas e as condições de oferta – não sobre as habilidades das crianças, afinal, a etapa ainda não está consolidada no Brasil. Basta lembrar que, de acordo com o Painel de Controle do Ministério da Educação (Simec), o Brasil ainda tem um déficit de 19.770 creches. Os dados oficiais mais recentes também dão conta de que somente 18% da população de 0 a 3 anos – ou 2 milhões de crianças – estão sendo atendidas nas 46 mil creches existentes.


Em contrapartida, apesar da previsão do governo de entregar 6.427 unidades até 2014, o ProInfância avança lentamente em decorrência do ritmo lento das licitações (cerca de seis meses) e das construções (dois anos em média). Dos R$ 2,3 bilhões empenhados para as obras, somente R$ 383 milhões foram pagos. “Há muitas discrepâncias em termos da oferta, o que impacta diretamente sobre o desenvolvimento das crianças”, afirma Maria Malta Campos, professora da PUC de São Paulo e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC).


Ela reconhece que os testes padronizados podem ser úteis em alguns contextos, mas devem ser adotados com cuidado, especialmente na educação infantil. “Uma avaliação desse tipo seria mais viável apenas como pesquisa diagnóstica, limitada, e assim mesmo bastante custosa”, analisa. Um elemento complicador é que o currículo para essas escolas não é estruturado em áreas do conhecimento, e sim num conjunto de atividades que integram diferentes aspectos do desenvolvimento infantil: o movimento, as diferentes formas de linguagem e expressão, a brincadeira, as interações e a afetividade.  Uma avaliação em larga escala teria de dar conta desses aspectos, sem perder a complexidade e relação entre eles.


Letramento
Outro risco é o impacto dos sistemas avaliativos sobre as práticas pedagógicas das escolas e creches.  Uma avaliação que focalizasse a prontidão para a alfabetização, como se fazia no passado, não seria compatível com as teorias contemporâneas sobre a alfabetização – centradas no letramento, no significado da linguagem escrita, e não na mecânica do alfabeto.  “Seria difícil convencer as escolas que elas não podem classificar as crianças por sua preparação para a alfabetização, enquanto uma avaliação oficial o faz”, diz Maria Malta. Em outras palavras, esse tipo de iniciativa corre o risco de seguir na contramão das políticas de educação no Brasil e, mais do que isso, dos próprios conceitos e teorias que endossam essas políticas, em um contexto em que nem mesmo o problema da oferta está solucionado.

Divergência conceitual
Para a SAE, o ASQ-3 serve como instrumento de monitoramento dos resultados, e não de avaliação da política brasileira para a educação infantil


Em meio ao debate sobre o ASQ-3, a diretora de programa da subsecretaria de Ações Estratégicas da SAE, Rosane Mendonça, defende que existe uma confusão em relação à palavra avaliação. “O ASQ-3 mede o desenvolvimento infantil, não as políticas de educação infantil”, afirma. O ASQ-3 é, na visão de Rosane, um instrumento útil para o monitoramento dos resultados obtidos por uma creche, sinalizando aspectos que merecem atenção ou reforço, ou mesmo, nos quais uma instituição se destaca. Mas não serve para avaliar um conjunto de ações e os resultados de uma política.


Em linhas gerais, o monitoramento pode ser definido como uma análise processual, ou seja, é feito durante o desenvolvimento de uma ação com a finalidade de aprimorá-la. Já a avaliação se aproxima de uma fotografia, enfocando os resultados obtidos por um programa ou uma ação em relação àquilo que havia sido proposto. Rosana afirma que, como qualquer outra medida, o ASQ-3 possui limitações; apesar disso, pode produzir informações relevantes em relação à aprendizagem dos alunos.  “O importante é começar a medir para termos parâmetros para as políticas”, afirma a diretora da SAE. De acordo com Rosane, não está descartada a possibilidade de a SAE optar por outro instrumento, apesar de, até o momento, a parceria com a prefeitura do Rio de Janeiro e as ações envolvendo testagem de crianças de creche terem se centrado sobre o ASQ-3.


Os resultados da aplicação do ASQ-3 nas creches da rede pública do Rio de Janeiro mostraram que 74% das 46 mil crianças avaliadas têm nível de desenvolvimento esperado para a idade. O teste também revelou que as crianças mais velhas têm desempenho mais próximo das crianças norte-americanas, enquanto a comparação entre os bebês revela uma distância maior entre os dois universos. Tal achado foi interpretado como uma evidência de que as creches cariocas estão colaborando para o desenvolvimento das crianças.


“Nosso foco é identificar as creches que precisam de reforço e as áreas em que é necessário prestar apoio pedagógico ou algum atendimento especializado, investir em infraestrutura ou tomar outras medidas”, explica Eduardo Pádua, gestor do projeto Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI), da secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro. Segundo ele, os resultados de 2010 já estão sendo utilizados dessa maneira. “Queremos construir uma série histórica, o que vai colaborar para tornar as políticas mais consistentes.”


Na opinião do gestor, o ASQ-3 cumpre adequadamente a função de avaliar o desenvolvimento, pois capta algumas dimensões fundamentais – embora não sejam as únicas. Pádua enfatiza que as informações obtidas por meio do ASQ-3 colaboram para intensificar a intersetorialidade das políticas para a primeira infância, algo que ele considera prioritário e importante em se tratando das creches. “Estamos em um momento em que precisamos passar de uma etapa em que as políticas para a infância se centravam sobre os direitos negativos; agora, é hora de enfocar os direitos positivos”, reitera.

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Marta Avancini


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