NOTÍCIA
Neste artigo, três especialistas apresentam medidas tomadas por outros países e reforçam a importância de gestores dialogarem com formuladores de políticas públicas
Publicado em 10/07/2020
Por Cristina Elsner*, Fábio Reis ** e João Otávio Bastos***
A pandemia é grave, e o ambiente da educação reúne as condições para a transmissão do vírus em larga escala. Por outro lado, educação é uma atividade econômica relevante e um setor estratégico. Há uma relação estreita entre qualidade e bom funcionamento do sistema educacional, inserção social, exercício da cidadania, melhoria das condições de vida e crescimento econômico.
No Brasil, nos últimos anos, nossas opções de políticas educacionais não permitem que tenhamos solidez no sistema de educação. A pandemia evidenciou nossa fragilidade em estabelecer políticas públicas para a questão. Em março, transformamos as aulas presenciais em remotas de forma não planejada, o que gerou uma série de problemas, e as “IES tiveram que voltar para escolas”, ou seja, tiveram que aprender a fazer o que não estavam fazendo.
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Os desafios foram muitos nessa jornada para tornar as IES digitais: capacitar o professor para que ele adquira competência digital; conhecer as ferramentas e novas tecnologias educacionais; adaptar o currículo para um modelo de ensino-aprendizagem remoto e implementar novas formas de avaliação; fazer uma releitura das tendências de mercado para cada área de formação; e promover mudanças na cultura institucional, entre outros desafios.
No Brasil, essa transformação do modelo de educação ainda está em curso. O Ministério da Educação não assumiu uma postura assertiva no contexto da pandemia; entretanto, as portarias publicadas permitiram a flexibilização dos modelos acadêmicos. Espera-se que possamos avançar em modelos acadêmicos mediados por tecnologias digitais.
O Conselho Nacional de Educação foi protagonista ao elaborar uma série de diretrizes que tornaram possível a transformação do ensino presencial em remoto. As Secretarias Estaduais de Educação tiveram estratégias e resultados diferentes. O Conselho Nacional de Secretários de Educação manteve-se articulado e também desempenha um papel relevante.
Não há dúvida que, em função da covid-19, as aglomerações precisam ser evitadas. O Brasil não é um exemplo de país que adotou o isolamento social de forma adequada. Até o momento, o que tivemos foi uma situação de falta de convergência nas decisões. Fomos incapazes de estabelecer diretrizes que criassem sintonias entre o governo federal e os estaduais embasadas em orientações da área de saúde.
Hoje, vivemos a consequência dessa falta de sintonias. As escolas estão fechadas, enquanto outros setores da economia estão abertos. Não há dúvida de que a saúde pública é o fator que precisa guiar as decisões, mas será que precisamos fechar integralmente as escolas?
O Insper, Instituto de Ensino e Pesquisa, publicou o relatório Estamos fechando escolas: essa é uma decisão sábia?. O estudo foi liderado pelo professor da instituição, Ricardo Paes de Barros. A jornalista Isabela Palhares, da Folha de São Paulo, fez uma reportagem sobre as consequências do fechamento das escolas, no dia 13 de junho, com base no estudo. Até o momento, não tivemos acesso ao relatório, mas lemos uma série de reportagens sobre o assunto.
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Segundo o artigo de Isabela Palhares, ‘a interrupção das aulas durante a pandemia do novo coronavírus pode reduzir o PIB (produto interno bruto) brasileiro de 5,3% a 23% pela perda de renda que os jovens sofrerão com o déficit de aprendizado (…) a projeção é que os jovens podem perder R$ 42,5 mil de renda se os conteúdos não forem repostos e eles seguirem para o mercado de trabalho com esses déficits”.
Ao citar essa reportagem, não se pretende afirmar que há uma dicotomia entre priorizar a saúde ou a economia. É necessário buscarmos soluções para que as escolas não fiquem totalmente fechadas, já que há protocolos validados mundialmente que permitem o retorno parcial das escolas, especialmente do ensino superior.
As evidências internacionais talvez sejam a melhor referência para a tomada de decisão. Há diversos países que já retornaram com o funcionamento das aulas práticas e experimentais, mantendo na modalidade remota as aulas teóricas.
É preciso reconhecer que a realidade dos países é diversa, pois estão em diferentes estágios da pandemia, além de possuírem outras características no que se refere ao território e à população. No Brasil, dependendo da região, a pandemia está em momentos diferentes.
O que facilitou o retorno às aulas presenciais em alguns países foi a atitude de suas autoridades. O caso de Portugal é relevante. No dia 15 de junho, o presidente Marcelo Rebelo de Souza foi o professor de uma aula on-line. O tema central foi cidadania. O presidente falou sobre “10 lições de vida” no contexto da pandemia. Portugal nos dá uma lição de como tratar a pandemia. As escolas voltaram a funcional no dia 18 de maio, de forma parcial.
O retorno das aulas do ensino superior em Portugal está previsto para setembro, mas, desde maio, laboratórios de cursos de Engenharia e Medicina funcionam com protocolos bem definidos.
A Austrália talvez seja um dos melhores exemplos de plano de retorno às aulas. O governo australiano criou uma força tarefa interministerial, chamada de Covid-19 Response Taskforce, para elaborar um plano de abordagem para os desafios impostos pela pandemia. Composto por representantes dos setores de saúde, educação, trabalho, segurança pública e economia, à equipe da força tarefa foi atribuída a responsabilidade de: definir uma abordagem coordenada para combater a disseminação da covid-19; planejar medidas de recuperação econômica abrangente a todos os setores produtivos, visando mitigar o impacto da pandemia; e recomendar estratégias setoriais[1], inclusive para o setor de educação, para a retomada das atividades produtivas.
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A força tarefa montada pelo governo australiano teve início em 5 de março de 2020, quando foi acionado “National Coordination Mechanism” (NCM), previsto em lei para ocasiões de emergência ou calamidade pública. Foram convocados o “Australian Health Protection Principal Committee” (AHPPC), responsável por prover aconselhamento e orientações de saúde; representantes dos diversos fóruns setoriais, organizados sob o “National Coronavirus Coordination Commission” (NCCC); e membros do “National Cabinet”, representando os estados e territórios.
Decisões compartilhadas, que envolvem diferentes ministérios na esfera federal, como também representações estaduais e outras entidades, indicam claramente que o país entendeu que a pandemia tem um impacto sistêmico e as soluções precisam ser pensadas a partir de um olhar multisetorial.
Recomendamos aos formuladores de políticas públicas do Brasil, antes de instituírem uma norma de funcionamento das instituições de ensino superior, analisar o documento “Principles and Protocols for Reducing the Potencial Risk of Covid-19 Transmission at University”[2], publicado no mês de junho pela associação de universidades australianas Universities Australia. O protocolo segue as orientações do Australian Health Protection Principal Comittee (AHPCC).
O protocolo para as universidades exige que cada instituição estabeleça um plano de gestão de riscos de contágio, definindo um protocolo e instrumento de avaliação das condições de uso dos laboratórios, com o objetivo de preservar a saúde dos usuários, incluindo normas de distanciamento e higienização dos equipamentos.
Também é recomendado um diálogo continuado com profissionais de saúde, monitorando se, ao longo do tempo e da retomada das atividades, surgem novas ocorrências de contágio. No que tange à reorganização dos espaços de aprendizagem, as recomendações são de manter quatro m2 por estudante em cada sala, iniciando atividades presenciais com grupos não maiores do que dez pessoas, entre outros fatores para garantir a segurança dos estudantes e profissionais da educação.
Cabe ressaltar que, para os australianos, as atividades de educação, e em específico o ensino superior, são consideradas atividades essenciais, que não podem deixar de funcionar mesmo durante a pandemia em função de seu impacto na economia, nas pesquisas em andamento, nas atividades práticas dos cursos de graduação e pós-graduação e na presença de estudantes estrangeiros no país, entre outros fatores.
No mesmo sentido, a Inglaterra definiu protocolos e orientou suas instituições de ensino superior. Se, no primeiro momento o primeiro ministro Boris Johnson demonstrou descaso com a pandemia, sua postura mudou. O país publicou o “Guidance Higher Education: reoping bulding and campus” no início de 2 de julho. Encontramos nesse documento diretrizes sobre uso de laboratórios, aulas experimentais, distanciamento, segurança, entre outros procedimentos e atitudes.
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O documento tem como base outros que foram publicados: “Guidance for providers about quality ans standars during the coronavirus (Covid-19) pandemic” e “Working safely during coronavirus (Covid-19)”. As IES definem seus planos de ação e a forma como planejam utilizar os espaços de aprendizagem conforme as orientações das autoridades do governo.
Podemos aprender com diversas experiências internacionais, seja na formulação de protocolos e diretrizes nacionais, ou ainda na elaboração de planos institucionais para a retomada de atividades presenciais, se dermos uma googlada. Foi o que vizemos
A partir de uma “pesquisa” simples, encontramos protocolos da Alemanha, Escócia e Holanda, além dos casos abordados anteriormente. Em relação aos Estados Unidos, encontramos protocolos de vários estados. De modo geral, o retorno às aulas é planejado e previsto, mas com cautela.
O funcionamento dos laboratórios e as atividades experimentais são autorizados, desde que sigam de forma rígida os protocolos. Há uma compreensão de que existem pesquisas que não podem ser interrompidas. Da mesma forma, sabe-se os alunos dos últimos anos dos cursos de graduação precisam realizar aulas práticas nos laboratórios.
Há consensos de que estudantes sem aulas terão déficits de aprendizado, especialmente entre os alunos com famílias de baixa renda. As desigualdades sociais devem se intensificar ainda mais se consideramos que a população de baixa renda é suscetível ao desemprego. Famílias com pessoas desempregadas e com jovens que não frequentam a escola é terrível para o país.
O cenário para as instituições de ensino aponta para uma crise profunda. Em um ambiente de desemprego, de dificuldade de acesso à internet, de incertezas sobre como será o funcionamento da escola nos próximos meses, de crises políticas e de vazio na condução das políticas educacionais, a queda de matriculas de novos estudantes no ensino superior deve ser drástica.
É certo que há um perigo iminente de termos uma das maiores crises da história no setor educacional. Segundo pesquisa do Instituto Semesp, 30% das IES podem encerrar suas atividades em função da situação financeira. Seria a atuação em redes de cooperação uma solução para esse desafio? Observamos uma situação de inadimplência que cresceu 72% comparando o mês de abril de 2019 com o de 2020. No mesmo período, a evasão cresceu 32,5%.
A pesquisa “Covid-19 and US Higher Education enrollment preparing for fall”, publicada em maio pela McKinsey, indica que há uma mudança de comportamento dos estudantes americanos. 44% dos entrevistados querem estudar em uma IES de menor custo. Não há uma disposição de assumir dívidas. Há uma preferência por estudar perto de casa e uma busca por desconto nas mensalidades. 83% dos entrevistados declararam que, no próximo semestre, esperam obter desconto da mensalidade.
Apenas 23% dos estudantes acreditam que podem obter uma formação de qualidade com o ensino remoto. Segundo a pesquisa, cada vez mais os alunos estão preocupados com a qualidade do ensino. Esses fatores precisam ser objetivo de reflexão em nossas IES.
A situação financeira das IES dos Estados Unidos tende a piorar. A McKinsey estima que as instituições podem perder R$19 bilhões em função da pandemia e da diminuição do número de alunos matriculados. Situações similares são observadas também em outros países.
Ricardo Paes de Barros apontou que as perdas da renda serão consideráveis com o fechamento das escolas. Por outro lado, a crise financeira somada à diminuição das matrículas no ensino superior poderão ocasionar a falência das IES privadas.
A permissão para que as IES retornem com as aulas experimentais e o uso laboratórios, conforme os protocolos, será uma forma de diminuir os déficits dos aprendizados, de criar condições para que os estudantes terminem suas graduações e de demonstrar que haverá a retomada gradual das atividades presenciais.
Sim, podemos aprender com as experiências internacionais e com as soluções encontradas pelas IES brasileiras. O fato é: nossas escolas não podem permanecer sem aulas experimentais. Essas aulas não representam necessariamente aumento dos casos da covid-19.
Há uma carência de planos detalhados sobre o uso dos espaços de aprendizagem.
Recomendamos que os gestores de IES apresentem aos formuladores de políticas públicas planos plausíveis para o retorno das atividades práticas.
Esperamos que as instituições que representam o setor educacional dialoguem com os agentes públicos. Entendemos que uma IES fechada representa uma série de perdas, especialmente para o aprendizado dos estudantes e para a economia do país.
*Cristina Elsner – doutora pela UNB, gerente de Educação e Ciências, para o escritório na América do Sul para o Ministério da Educação, Capacitação e Emprego da Austrália.
**Fábio Reis – diretor de Inovação e Redes do Semesp, diretor de Inovação Acadêmica da Unicesumar, presidente do Consórcio Sthem Brasil e professor do Unisal
***João Otávio Bastos Junqueira – Reitor da Unifeob e diretor de Relações Institucionais do Semesp.
[1] Foi elaborado um plano de retomada das atividades produtivas que definiu diretrizes específicas para cada setor econômico, considerando três etapas de implementação. Mais informações em https://www.pm.gov.au/sites/default/files/files/three-step-framework-covidsafe-australia.pdf
[2] O documento completo pode ser acessado pelo link https://www.universitiesaustralia.edu.au/wp-content/uploads/2020/06/200610-Principles-and-Protocols-for-reducing-risk-of-COVID-19-transmission-at-universities1.pdf
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