NOTÍCIA
Em entrevista, presidente do CNE destaca que reformulação do Enem, de um novo modelo de sistema de avaliação e um Enade central são algumas das pautas já em movimento
Publicado em 18/12/2020
Muito experiente em políticas públicas educacionais, principalmente as ligadas a indicadores de qualidade, e que ainda conhece os principais gargalos da educação básica e superior brasileira. Com uma longa e notória trajetória profissional, é difícil resumir as atuações de Maria Helena Guimarães de Castro, hoje presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).
Mestre em ciências sociais, especialista em educação e professora aposentada de ciência política pela Unicamp, Castro presidiu o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 1995 a 2002, foi, em São Paulo, de 2007 a 2009 secretaria de Educação do estado, também ocupou o cargo de secretária-executiva do Ministério da Educação, de 2016 a 2018, dentre outras funções públicas.
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Nesta entrevista exclusiva à Ensino Superior, com clareza e precisão, Maria Helena Guimarães de Castro destaca as prioridades do CNE para o próximo ano. As declarações da presidente do Conselho deixam nítido que trabalho não falta e nem faltará, como as reformulações no Enem, no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e ainda a proposta de um Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) central que deixe de avaliar cada licenciatura.
Indagada sobre como incentivar o ingresso no ensino superior e a sua conclusão, a especialista deixa claro que sim, o país precisa de mais apoio em programas de financiamento como Fies e ProUni — atualmente tão enfraquecidos —, mas não só isso. “Muitas vezes, os cursos de nível superior que os alunos frequentam estão descolados do que o mundo do trabalho exige e isso também faz o aluno desistir”, alerta.
Confira, a seguir, a entrevista.
Quais as principais pautas da educação em 2021?
Em primeiro lugar, concluir todas as reformulações normativas que ainda estão pendentes em relação à implementação do novo ensino médio. A primeira delas é a revisão do Enem para 2024-2025, que é um Enem que deverá estar absolutamente alinhado à nova Base do ensino médio. Para isso estamos em diálogo permanente com o Inep, que está pretendendo, já no próximo ano, ter uma nova matriz de avaliação do novo Enem, uma matriz que se refira à avaliação da Base de formação geral comum e a outra que se refira à segunda etapa do Enem, que é dos itinerários.
A segunda pauta do CNE para o ano que vem é a discussão sobre a avaliação da educação básica e a avaliação do ensino superior. Em relação à do ensino superior, já há um início de conversa entre o Inep e o Conselho Nacional para começar a discutir o novo modelo do Sinaes. Nós entendemos que esse novo modelo precisa ser repensado com ênfase na autoavaliação institucional, revendo as avaliações dos cursos e sendo avaliações mais por competências e menos por objetivos programáticos como é hoje. Isso significa uma mudança na lei do Sinaes e uma mudança no projeto e modelo atual de avaliação do ensino superior que envolve o Enade, envolve comissões que avaliam in loco. É uma discussão que está muito no início e, portanto, agora, não temos nenhuma proposta pronta.
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Outra pauta extremamente relevante para a implantação do ensino médio são as diretrizes de ensino técnico e tecnológico e como construir uma agenda articulada com os sistemas de ensino, especialmente sistemas estaduais. Com o novo ensino médio, os alunos poderão fazer o ensino técnico e tecnológico junto com o ensino médio durante três anos em 3 mil horas. Pauta importante porque, primeiro, poderá preparar melhor os estudantes para o mundo do trabalho e ao mesmo tempo prepará-los melhor para o ensino superior, porque, em geral, alunos que fazem ensino técnico integrado ao ensino médio têm um excelente desempenho no ensino superior nas carreiras correlatas às áreas técnicas e tecnológicas que eles seguem.
Na educação básica a pauta principal é a implantação da BNCC e a ampliação do conceito de alfabetização, além da avaliação da educação básica alinhada à BNCC.
A Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) já foi aprovada. O foco agora é a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada). Em que pé está esse novo documento de formação continuada?
A formação de professores é, talvez, a pauta mais importante. Nós aprovamos a formação inicial, novas diretrizes, no final de 2019. Aprovamos agora as novas diretrizes de formação continuada e estamos preparando — sou presidente da comissão e Mozart Ramos relator — as novas diretrizes de formação de gestores de educação básica. Então são três diretrizes importantes para rever integralmente a formação inicial, continuada e formação de gestores da educação brasileira e sabemos que a formação de professores e gestores é exatamente o maior desafio para nós implementarmos a BNCC e podermos inovar a sala de aula e a educação brasileira.
Há uma proposta dentro da BNC de criar um Enade específico para a formação de professores. O que a mudança trará para a vida dos futuros educadores e qual a atual situação?
Primeiro, essa proposta depende da reformulação do Sistema de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes). A ideia é ter um Enade central que avalie as licenciaturas e não um Enade para cada licenciatura. Seria um Enade que avalie a formação de professores considerando as novas matrizes de formação de professores que estão nas diretrizes que já foram aprovadas.
É uma mudança importante. Em vez de ter um Enade para cada licenciatura, de cada jeito, disciplinas, teríamos um Enade geral por licenciaturas, podendo abrir para provas específicas para cada um dos componentes curriculares, dependendo da área, daquilo que for objeto de consenso na discussão da avaliação desse novo Enade.
Além disso, estamos iniciando agora a discussão da pedagogia. Primeira coisa que precisamos mudar são as diretrizes da pedagogia, porque há conflito entre as atuais diretrizes da pedagogia e as diretrizes de formação de professores que já foram aprovadas. Estamos iniciando esse debate e espero que até meados do próximo ano nós já tenhamos uma nova diretriz para a formação dos cursos de pedagogia.
Acredito que essas discussões deverão caminhar junto com o debate acerca do novo Sistema de Avaliação do Ensino Superior do Brasil.
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É muita coisa. Uma mudança em prol de mais qualidade educacional terá reflexos em um todo.
Sim, mais qualidade e mais integração entre a formação do professor e a sua profissionalização docente. No caso da formação inicial, historicamente, há uma separação entre a formação teórica e a prática. As licenciaturas normalmente oferecem uma pratica de estágio no final do curso e a nova proposta é completamente diferente, exige um número maior de horas para a formação profissional do futuro professor, que já deverá ter contato com a escola desde o início de sua formação. Ou seja, há uma intenção de unir prática e teoria.
Os programas de financiamento governamentais foram reduzidos. Como é que o Brasil, com essa tamanha desigualdade social, pode incentivar as pessoas das classes C, D e E a ingressarem e concluírem o ensino superior?
Há vários fatores que interferem nesse processo. O primeiro tem a ver com a questão de renda e dificuldade de pagamento das mensalidades pelos alunos. Nesse sentido, é muito importante a manutenção de programas como ProUni, Fies, a flexibilização de mecanismos de financiamento para alunos terem condições de garantirem a sua conclusão do curso tendo um financiamento adequado. Esse é um ponto que precisa ser discutido intensamente e, principalmente, com o Congresso Nacional e com o governo: MEC, Ministério da Economia. Não é assunto que o Conselho Nacional tem como resolver. Normalmente, o CNE não entra em discussões que envolvem gastos e financiamento.
Agora, o Conselho Nacional de Educação tem condições de melhorar, por exemplo, as diretrizes curriculares dos cursos. Não é só o aluno não poder pagar. Pagar é essencial, ter um financiamento é essencial, mas se o aluno entender que o currículo não vai ajudá-lo a ter uma inserção maior no mercado de trabalho — que se transforma a cada instante —, ele acaba abandonando.
E muitos cursos têm currículos extremamente teóricos e ultrapassados e os alunos percebem isso, porque há uma mudança completa no mundo trabalho… Se os cursos de ensino superior continuarem muito tradicionais eles vão perder alunos.
Então, eu acho que é esse o desafio. De um lado melhorar o perfil de financiamento e do outro renovar intensamente os currículos de ensino superior para que os nossos alunos estejam cada vez mais preparados para um novo mundo do trabalho e para enfrentar os novos desafios do nosso século, desenvolvendo competências e habilidades requeridas pelo mercado.
Todo mundo sabe que medicina, engenharias, direito, economia, todas as profissões estão sendo tremendamente afetadas por mudanças tecnológicas e os cursos precisam ser cada vez mais inovadores para conseguir que os alunos realmente se sintam envolvidos, engajados no processo de aprendizagem e que compreendam que aquilo vai realmente resultar em um grande benefício para a sua profissionalização.
A BNCC pressupõe um novo Enem e também afetará vestibulares. Esse processo é um toque discreto para as instituições de ensino superior, de fato, abraçarem as habilidades socioemocionais e se deslocarem de uma formação mais tradicional?
Sim. Uma possiblidade é o Inep, quando rever o novo Enem, fazer uma prova da parte de formação geral que vai abranger língua portuguesa, matemática, as duas áreas do conhecimento — tudo aquilo que está previsto na Base de formação do novo ensino médio. Em relação aos itinerários, é uma discussão em aberto. Alguns vestibulares como o da Unicamp já estão definindo uma nova proposta muito mais alinhada às áreas profissionais. No caso da Unicamp, a primeira prova é voltada a conhecimentos gerais para todos os alunos, na segunda etapa há uma prova para a área da saúde, das engenheiras, ciências sociais aplicadas; essa acaba sendo uma nova tendência, alguns outros vestibulares como o da Unesp e da USP já estão discutindo estratégias parecidas.
Além disso, o MEC já está anunciando, para o próximo ano, o primeiro Enem seriado, uma prova aplicada no final do ano para todos os alunos no primeiro ano do ensino médio com o objetivo de oferecer um tipo de programa de avaliação seriada e cuja média será considerada pelas universidades ao final de três anos sucessivos. Esse é o caso da avaliação seriada da UNB, que tem prova no primeiro ano, segundo e terceiro e depois a média é considerada pela UNB em seu processo de seleção. Então vai haver agora uma flexibilização do sistema.
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Com as novas tecnologias e o surgimento da pandemia, que intensificou o discurso de que “tudo vai mudar”, a senhora acredita em uma mudança drástica na educação?
Sim, acredito em uma mudança muito grande. No caso do ensino superior, os cursos presenciais vão se apoiar cada vez mais no ensino híbrido para desenvolverem atividades complementares e usar novas tecnologias para que os alunos tenham a possibilidade de desenvolverem novas competências e habilidades e se integrarem às redes de cooperação, redes inclusive de internacionalização que vão ajudar os alunos a ter um desenvolvimento maior. E aqueles cursos a distância, os cursos EAD, terão que se reformular completamente. Porque o curso EAD tradicional, com certeza, sofrerá impacto da pandemia e será cada vez mais um curso flexível, mais inovador do que o EAD que nós tínhamos e cada vez mais aberto a mudanças tecnológicas, laboratórios virtuais, a uma série de instrumentos que as tecnologias oferecem, além de um processo de inovação.
As universidades deverão pensar até em formas de redes de cooperação para laboratórios de inovações educacionais e no desenvolvimento de novas tecnologias que possam ser usadas por diferentes cursos. Não precisa cada instituição ter o seu laboratório, o seu projeto. Você pode compartilhar muitos projetos e, isso, com certeza, servirá para engajar mais os alunos no ensino superior.
O ensino superior brasileiro é muito regulamentado? Algumas IES reclamam de que tudo é muito atrelado ao MEC. É ruim ou tem de ter essa ‘supervisão’?
Eu concordo que há um excesso de regulação burocrática. Uma coisa é o excesso de burocratismo na regulação do ensino superior, outra é um processo de regulação que estimule a inovação, a avaliação institucional, a autoavaliação institucional e os projetos de desenvolvimento institucional inovadores abertos para esses novos perfis de qualificação profissional. No momento atual, os cursos de ensino superior são muito regulados a partir de diretrizes curriculares que muitas vezes já estão ultrapassadas e exigem uma série de requisitos que são extremamente burocráticos e impedem as inovações. Eu espero que nesse processo de discussão do Sistema de Avaliação do Ensino Superior — do Inep com o Conselho Nacional de Educação e as instituições -— possamos abrir esse sistema de avaliação para que ele evolua a um sistema menos regulatório no sentido burocrático da palavra e mais aberto à inovação e à autoavaliação institucional.
Em quase dois anos, o Brasil está em seu quarto ministro da Educação, sendo que um foi anunciado e não chegou a assumir. Quais os prejuízos com essas trocas e o que a senhora espera de um ministro da Educação?
Realmente, a descontinuidade é algo que dificulta muito o desenvolvimento de políticas públicas na área da educação. Educação é um processo, depende de continuidade, depende de políticas públicas que articulem diferentes atores. Então, as mudanças no Ministério da Educação e a descontinuidade das ações dificultam o andamento das políticas educacionais.
Por outro lado, apesar dessas mudanças recentes, temos algumas grandes linhas de políticas públicas que foram mantidas e continuam. É o caso, por exemplo, da Base Nacional Comum Curricular aprovada pelo CNE em 2018, da formação dos professores alinhada à BNCC que começará a ser implantada agora.
De outro lado, observo que o novo ministro da Educação, que chegou recentemente [Milton Ribeiro tomou posse em julho de 2020] tem aberto diálogo com o CNE. Ele já esteve no Conselho Nacional duas vezes. Eu espero que esse diálogo se mantenha e traga bons frutos para a educação brasileira.
Ao lado disso, temos mantido no Conselho um diálogo permanente com os secretários estaduais, Consed, Undime, e demais entidades que representam o ensino básico e superior. Eu acredito que esse papel do CNE de ter um espaço permanente de diálogo e interação com o setor público e privado, com as entidades comunitárias, confessionais, acho que tudo isso ajuda a abrir espaços para encontrar soluções que sejam cada vez mais compartilhadas pela maioria e que a gente tenha mais condições de implementação.
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