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O psicólogo Ricardo Primi explica como e por quê essas competências devem ser desenvolvidas nas instituições de ensino superior
Publicado em 14/05/2020
Em uma realidade em que todo o conhecimento está disponível na internet, as competências que precisam ser trabalhadas pelas instituições de ensino mudaram consideravelmente. Não por acaso, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), teste de larga escala coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), vai avaliar pela primeira vez o pensamento crítico e a criatividade dos jovens. O teste acontecerá em 2021 em caráter experimental, mas já indica para as escolas uma mudança de rumo importante nos sistemas educacionais.
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Em entrevista à Ensino Superior, o psicólogo Ricardo Primi, professor associado do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade São Francisco (USF) e pesquisador do Conselho Científico do Instituto Ayrton Senna, explica a importância dessas habilidades e como elas podem ser trabalhadas pelos educadores
Ao contrário de leitura e matemática, dimensões já avaliadas pelo Pisa, criatividade e pensamento crítico parecem aspectos mais subjetivos. Como essas duas habilidades são definidas pela ciência?
São todas capacidades da inteligência, são aspectos da inteligência humana. Matemática e português são um tipo de inteligência como conhecimento. Por exemplo, se alguém vai fazer uma conta ela reproduz o que aprendeu, se alguém aprende a escrever também reproduz o que aprendeu. Mas tem a inteligência como aprendizagem, como uma capacidade mais flexível de aprender novas coisas. É uma capacidade fluida que não está atrelada a um determinado conteúdo. Quando você tem um problema como a epidemia do coronavírus, por exemplo, você pode tentar achar uma solução criativa para um remédio que não é conhecido. Então não é simplesmente aplicar o que você sabe, mas buscar outras coisas e achar uma solução. O raciocínio crítico e a criatividade são duas habilidades de alto nível porque são mais complexas. A criatividade tem a ver com a produção de ideias novas, originais e úteis para um contexto social específico. Isso pode ser tanto uma produção cotidiana, que a gente chama de “Little-C”, quanto as grandes invenções, o “Big-C”. Todo mundo confunde a criatividade com coisa de gênio que inventa coisas e não necessariamente é isso.
E o pensamento crítico?
O pensamento crítico é mais ou menos como um sinônimo de inteligência ou de um raciocínio de alto nível. Não é só a cognição que importa, mas justamente raciocinar logicamente, ter conhecimento e metacognição. Ou seja, se autoavaliar para revisar os aspectos emocionais, especialmente das crenças que a gente tem. As crenças e valores determinam muito daquilo que a gente já acredita a priori como verdade. Toda vez que temos uma opinião, precisamos raciocinar criticamente para entender se essa opinião é verdadeira, falsa, ou se não temos informação suficiente ainda sobre o tema. Isso se aplica em todas as situações, especialmente nesse cenário de fake news e teorias conspiratórias tão presentes hoje.
O pensamento crítico também prescinde de levar em conta o ponto de vista do outro?
Exatamente, porque isso tem a ver com o aspecto emocional e de colaboração, que são importantes também na criatividade. No raciocínio crítico, a colaboração vem no sentido de aceitar diferentes opiniões e, ao mesmo tempo, aceitar a regra de jogo – e quando se perde. A regra do jogo é que tem que ditar o que é verdadeiro ou falso e não quem tem mais poder. Uma pessoa com bom raciocínio crítico tem maturidade emocional para justamente entender o ponto de vista de que ela não gosta. Por isso que é uma habilidade que não envolve só inteligência, é híbrida porque inclui aspectos socioemocionais.
Em geral se acredita que a criatividade é uma habilidade nata, privilégio de algumas pessoas. De onde vem esse mito de que algumas pessoas são criativas e outras não?
A crença é baseada na ideia que associa a criatividade à genialidade. A genialidade é aquela pessoa que nasce com um potencial absurdo e realiza coisas em uma determinada idade que outras crianças não fariam, por exemplo. Mas quando a gente fala em criatividade, estamos falando do potencial de criação que todo mundo tem, em vários níveis e em diferentes áreas. A mesma lógica serve para o raciocínio crítico. Com a educação formal e intencional, você consegue desenvolver essas habilidades com certeza. A gente tem que desconectar o termo criatividade da genialidade. Inclusive, se a própria escola exercita o processo de pensar criticamente e aplicar esses conhecimentos e raciocínios sobre os problemas sociais que a gente vive, o aluno já vai aplicar isso na sua vida.
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Hoje essas habilidades já são exigidas pelo mercado de trabalho? Em quais áreas são mais necessárias?
Em geral em todas as áreas, mas principalmente em trabalhos mais complexos. A criatividade é importante na área artística ou científica, mas também na indústria como inovação. Você pode, por exemplo, criar uma maneira de fazer um processo que já existe, mas torná-lo mais barato. São habilidades presentes em todos os momentos. Na vida em sociedade e a maneira como a gente acessa informações, incluindo rede sociais e internet, é necessário ter essa capacidade de checar a informação e desenvolver a metacognição de que nem sempre o que eu ouço é verdade. Tudo isso é parte de ser cidadão hoje.
Essas habilidades podem ser desenvolvidas em qualquer fase da vida, inclusive no ensino superior?
Com certeza. Em princípio, o raciocínio crítico sempre foi uma habilidade mais presente no ensino médio e no superior. Os processos do raciocínio crítico incluem aspectos como o conhecimento da lógica aristotélica, a metacognição, todas são sub-habilidades ligadas ao raciocínio crítico. O que vai mudar é o tipo de problema, que no ensino superior é mais complexo, mas as habilidades envolvidas são as mesmas. Se você imagina por exemplo um determinado problema da sua área que envolve opiniões conflitantes, essas tarefas vão fazer um convite ao raciocínio crítico e à criatividade para chegar a conclusões a partir do conhecimento que você tem. Esse tipo de exercício obviamente já é feito em muitas universidades e faculdades. O importante é que a maneira como se ensina precisa ser mais aberta e estimular a reflexão. A criatividade depende muito do suporte do ambiente do ensino para valorizar a criação de novas ideias. Isso requer um pouco a mudança desse mindset do professor.
O professor é chave no desenvolvimento dessas habilidades?
Precisa haver abertura em sala de aula a esse tipo de situação, no sentido de abertura a essa eventual tensão. Para o desenvolvimento do pensamento crítico o objeto precisa ser um problema complexo, que envolve divergência de ideias e possíveis conflitos. O professor precisa ter a capacidade de organizar esse ambiente, porque só deixar solto não resolve, e para esse tipo de tarefa há também uma didática específica. Em relação à postura do professor é você ser mais aberto, mas também saber estruturar, como uma espécie de facilitador de todo o processo, trazendo um conjunto de conhecimentos para isso. Na criatividade, por exemplo, há estratégias para estimular a criação de ideias, mas também precisa haver uma fase de análise e uma síntese integrativa em que se avaliam todas elas até chegar a uma ideia comum. Pode parecer simples, mas não é tão fácil e exige do professor conhecimentos específicos como gerenciamento de conflitos e questões socioemocionais, por exemplo.
A criatividade em geral é associada à arte e à cultura, mas ela se aplica a outras áreas do conhecimento, como as exatas?
Ela é superimportante na área de exatas também. A criatividade está na maneira estratégica de resolução de problemas. Na matemática, por exemplo, você pode fazer uma conta de várias maneiras. Mesmo em uma conta simples há o método A, B ou C para chegar a uma mesma resposta e isso tem a ver com a criatividade. A criatividade depende do domínio e há as criatividades específicas de cada uma das áreas. É uma questão de saber especificamente, em cada área, como ela se manifesta. Hoje em dia a gente fala isso que a criatividade é domínio específico, você tem criatividade na ciência, nas artes, na escrita, a criatividade mais social de persuasão e liderança. Cada uma dessas tem uma combinação de ingredientes diferentes.
De que forma é possível avaliar, em testes como o PISA, a criatividade e o pensamento crítico dos alunos?
Não é fácil, mas elas já são avaliadas em certa medida. No caso do raciocínio crítico, inclusive, há vários testes. O próprio PISA é mais genérico e já abarca nesse sentido a proposta de pensar em situações mais complexas, então ele também envolve um aspecto de raciocínio crítico. Para o raciocínio crítico você sempre tem a proposição e resolução de problemas. Mas é importante que esses problemas sejam complexos, o que não é fácil medir com testes de múltipla escolha como costumam ser os de larga escala. Para avaliar o raciocínio crítico é melhor quando você tem respostas abertas. O problema de testes abertos é que não existe uma resposta certa que uma máquina pode corrigir. Você precisa de alguém no meio do caminho que é o avaliador, portanto é uma avaliação mediada e é necessário se preocupar com a qualidade desse avaliador.
E como avaliar a criatividade?
A criatividade tem sido mais difícil e você tem o mesmo problema. Os testes que existem pedem para você produzir ideias a partir de estímulos. O PISA vai avaliar criatividade em 2021 e um dos exemplos é o uso de figuras geométricas. Por exemplo, você exibe uma flor, um gato e uma casa e pede para o aluno criar uma história usando as três imagens. Nisso, você está testando a fluência de ideias, que é um aspecto do potencial criativo. Do ponto de vista da logística e da viabilidade é muito complexo, exige muitos avaliadores. Mas recentemente, com inteligência artificial, isso tem avançado em alguns testes mais simples em que já foi possível corrigir por máquina.
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