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Entrevistas

‘Temos de nos organizar para começar a viver de outro jeito’

Em entrevista, a professora e filósofa Olgária Matos fala sobre pandemia, incertezas e de uma crise de instituições que gera desconfiança e falta de um vínculo

Publicado em 24/06/2020

por Inês Pereira

olgaria-matos Olgária Matos: Mesmo quando se reúne, a massa não estabelece laços entre si e cada um continua atomizado

A voz de Olgária Matos tem alcance. Na academia, com seus alunos doutorandos, entre pensadores, estudiosos, educadores, pessoas cuja reflexão faz parte do dia a dia. Na mídia ou em sala de aula, seus 18 livros – e um Prêmio Jabuti de Ciências Humanas – fora os inúmeros artigos e ensaios publicados, delineiam o respeitável currículo da filósofa nascida Olgária Chain Feres Matos, em Santiago do Chile, em 1948.

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No endereço da Rua Maria Antônia, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, em plenos anos 1967 e 1970, a jovem Olgária é forjada. Em 1971, a filósofa parte para a França, onde encontra na Sorbonne o seu lugar de estudos e sua linha de pesquisa – a desigualdade em Rousseau.

Olgária Matos
Olgária Matos: Mesmo quando se reúne, a massa não estabelece laços entre si e cada um continua atomizado

De volta ao Brasil, com a bagagem de investigação aberta para novas possibilidades de pensamento, Olgária realiza a sua trajetória de doutoramento conduzida pela professora Marilena Chauí. Sua tese resulta no livro Os arcanos do inteiramente outro, premiado, e o reconhecimento como Professora Doutora da Faculdade de Filosofia, da USP.

O pensamento inquieto da filósofa quer alcançar outros matizes da existência humana. Assim, sua produção contempla ensaios sobre feminismo e seu espírito de contemporaneidade a torna convidada ao debate aberto. Olgária tem muito que falar sobre questões como banalização da violência, consumo descontrolado, mídia, crítica social, enfim.

Depois de participar da criação do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do qual se tornou coordenadora, Olgária Matos continua exercendo sua maior paixão – dar aulas. Na USP, a professora titular aposentada é orientadora de alunos do doutorado e, na Unifesp, segue como professora titular.

Como uma parcela grande de pessoas, no Brasil e no mundo, Olgária também se encontra em isolamento social. E é sobre este momento que ela fala.

Como a senhora resume o momento caótico provocado pela pandemia no mundo?

Tanto o vírus como a forma que atingiu todo o mundo foram inesperados para todas as pessoas. Infectologistas já falavam há algum tempo sobre vírus novos, cada vez mais desconhecidos. É surpreendente a violência dessa doença, que pode matar em dois dias. Não há uma preparação, é tudo muito rápido. E após gerações de uma suposta onipotência da ciência que pode tudo e garante tudo, a humanidade é vencida por um vírus. E nem um vírus é. É a parte de um DNA. Eu tenho a impressão de que o que está mais desnorteando é que não existe mais uma ideia de autoridade, uma palavra na qual você possa confiar. Cada um está reduzido ao seu próprio estado de solidão. Você tem de ouvir as coisas e decidir por si próprio. Não dá para confiar na China, na OMS; não dá para confiar no governo, não se tem nada. Alguém na década de 1950 disse que estávamos entrando em uma era desconhecida… Imagina como estamos hoje.

Especificamente no Brasil, há uma dupla mensagem, em que o governo federal diz uma coisa e os estaduais dizem outra. Isso reforça a desconfiança das pessoas?

Sim. Isso vem de uma desinstitucionalização das instituições, uma perda completa de referência nas instituições. É cada grupo com a sua própria paranoia. Um resolve que não existe pandemia, que é só uma gripe como qualquer outra. Uma negação total. E, aqui, ainda há um descaso, não só consigo mesmo – “eu vou pra rua, e se pegar, peguei” – mas também com o outro, sem se importar se vai transmitir. O simples fato de o outro existir já deveria obrigar qualquer um a seguir as prerrogativas como usar máscara e manter distanciamento. E esse tipo de situação é bastante preocupante.

O não olhar para o outro, o não se preocupar com o outro, é um sentimento que, infelizmente, não veio com a situação de pandemia…

Uma coisa muito mais imediata é a falta de cidadania. Falar de cidadania, hoje, virou clichê. Mas ser cidadão é participar de um destino comum compartilhado, e isso vem de adições, respeito ao outro, civilidades, etiqueta, todo um sistema de organizações não necessariamente conscientes, mas que são seguidas por uma sociedade. Somos parte de uma cultura em que o público e o privado sempre se confundiram. E nesse processo de crise de instituições, a perda de confiança na família, na universidade, na escola, na igreja se torna mais comum ainda. Hoje, temos organizações menos constrangedoras do que as do passado, mas também menos protetoras. Se uma religião não resolveu o seu problema de saúde, desemprego ou relação amorosa, você simplesmente larga aquela religião e escolhe outra. O que temos é uma descrença geral, porque as religiões não são mais protetoras. Uma coisa que poderia ser uma solidariedade de proximidade e amizade, hoje, tende a uma atomização, cheia de indivíduos isolados. Mesmo quando se reúne, a massa não estabelece laços entre si e cada um continua atomizado.

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E por que as pessoas, mesmo reunidas em grupo, continuam atomizadas?

Acho que existe uma tendência típica do mundo contemporâneo que é o particularismo – as mulheres, os homossexuais, os negros, os índios, os muçulmanos, os católicos, os judeus. São tantas particularidades colocadas que o universal desapareceu. Não há relativo. O relativo passou sempre por uma ideia de diálogo comum compartilhado. O outro não mais existe. E no Brasil de hoje, isso é muito mais latente. Há uma infantilização. O comportamento de não ouvir o outro é muito infantil. Nem chega a ser maldoso, é mais uma inconsciência total.

Então, sim. Parte do que estamos vivendo está acontecendo já há algum tempo: um histórico de imadurecimento, inclusive nas instituições. Para vivermos em um mundo compartilhado, é preciso valores. E, para esses valores operarem como orientação, precisam ser desenvolvidos ao longo do tempo. Por mais que haja mudanças de comportamento muito rápidas, elas não são acompanhadas pela formação de novos valores justamente porque não há tempo para se formarem. Se pensarmos em como a ciência e a técnica determinam tantas coisas – a possibilidade de transplantar um útero em um homem, o tornando capaz de gestar; gerar vida em laboratório com base em combinações de carbono –, essa situação atual tira muito a identidade das coisas. Tudo fica tão impermanente, que você não tem mais uma referência coletiva nem individual para discernir o que é significante e o que não é.

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Inês Pereira


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