A prática de relacionamentos autênticos promove a construção de conexões mais profundas e satisfatórias, incentivando o desenvolvimento da autoconsciência e do autoconhecimento
No divã: Larissa Albunio Silva, professora e designer de experiências de aprendizagem
Há tempos, vivemos à sombra de um paradigma educacional que, se me permitem a ousadia, não só precisa de revisão, mas de uma verdadeira terapia de choque. Este é o paradigma da instrução, onde o conhecimento é servido em doses pré definidas, embalado por currículos rígidos e entregues de maneira unidirecional – do alto da autoridade do professor para o estudante, como se estivéssemos ainda em um século distante, no qual a única relação possível entre aprender e ensinar fosse a do transmissor e receptor.
É o status quo que perpetua a ideia de que “ensinar é informar” e que, quanto mais se explica, mais se aprende. O que desconsidera é o fato de que o aprender verdadeiro, aquele que provoca transformação, se dá nas relações. Aqui reside o segundo paradigma, aquele que carrega consigo a semente de uma cultura de aprendizagem: o paradigma da comunicação e das relações.
Ao longo da minha trajetória como educadora, formadora de professores e entusiasta de metodologias ativas, vi, muitas vezes, o paradigma da instrução ser desafiado. Não sem resistência, é claro, pois qualquer processo de mudança provoca desconforto. Mas a beleza do incômodo reside justamente na oportunidade de evolução. Quando começamos a reconhecer que o processo de aprendizagem não é sobre “dar aulas” e sim sobre “criar ambientes”, compreendemos que a relação entre alunos e professores se expande para além do conteúdo, alcançando as esferas emocionais, sociais e culturais.
Não é raro que se pergunte: “Mas, então, como inovar sem perder o controle da sala de aula?” Essa pergunta, por si só, revela a armadilha do paradigma da instrução. Porque ela parte do pressuposto de que a educação só funciona quando está sob controle. A grande ironia é que o aprendizado significativo prospera no caos das relações, nas discussões espontâneas e nas trocas que, muitas vezes, fogem ao script.
Em minha experiência de 10 anos, tanto em sala de aula quanto em projetos educacionais, percebi que a verdadeira mágica da aprendizagem acontece quando abandonamos a ideia de controle absoluto e, em vez disso, cultivamos um ambiente de confiança mútua. É no espaço das relações que a aprendizagem floresce. Professores e alunos, como co-construtores do saber, devem estar abertos para se desafiar, se conectar e, acima de tudo, se permitir errar e aprender com esses erros.
O caminho da humanização no ensino, tão necessário, nos obriga a reformular perguntas. Não se trata de como ensinar melhor, mas sim de como comunicar melhor. Como nos conectamos com os nossos estudantes, e como criamos contextos onde as experiências de vida, tanto as nossas quanto as deles, convergem para construir conhecimento de maneira colaborativa?
Meus questionamentos atuais giram em torno de uma única premissa: como podemos promover uma cultura de aprendizagem contínua, onde as interações humanas, as trocas genuínas, são o coração do processo?
Nessa caminhada, trago uma convicção que permeia minhas práticas e que pode incomodar aqueles apegados ao velho paradigma: o conteúdo é importante, claro, mas as relações são o eixo fundamental de qualquer processo de aprendizagem que tenha a emancipação como objetivo. E quando falo de emancipação, não me refiro à capacidade de os alunos se tornarem independentes – sozinhos, navegando a vida sem mestres – mas à capacidade de pensarem por si mesmos, de dialogarem criticamente com o mundo que os rodeia e, com isso, fazerem escolhas mais conscientes e coerentes.
Assim, encerro esta reflexão com um convite: que possamos questionar o status quo da instrução e abracemos o poder transformador da comunicação e das relações. Afinal, quando o aprendizado se transforma em um processo de troca mútua, nos tornamos todos aprendizes, e a educação deixa de ser um monólogo para se tornar um vibrante diálogo com o mundo.
Minha frase: “Questionar a forma como você pensa é o primeiro passo para melhorar as suas escolhas”.
A relação que se estabelece dentro da sala de aula é, de fato, muito mais complexa do que muitas vezes conseguimos perceber. Como professores, talvez nem sempre tenhamos plena consciência do impacto que nossas interações têm na aprendizagem, mesmo com tantos teóricos já apontando para a importância desse aspecto. Afinal, o quanto de “pessoas” um professor precisa entender?
Sabemos que a revolução tecnológica tem transformado não apenas a maneira de aprender, mas também a forma como nos relacionamos. Veja, por exemplo, os recreios escolares, que antes eram descritos como cenários caóticos, repletos de correrias e gritarias, deram lugar ao silêncio provocado pela presença dos dispositivos móveis, que mantêm os estudantes isolados em suas telas. Felizmente, essa realidade parece estar com os dias contados, pelo menos na educação básica, trazendo esperança de um retorno ao convívio mais ativo e às interações humanas.
Embora estejamos cada vez mais conectados em rede, não estamos verdadeiramente vinculados. Isso é o que nos alerta o filósofo coreano Byung-Chul Han (2024), ao afirmar que o relacionamento tem sido substituído pelo contato, mas sem qualquer toque real. Segundo ele, o contato, por si só, não gera proximidade. À medida que a sociedade se torna mais narcisista, os relacionamentos autênticos vêm definhando, resultando em uma falta de laços, a ausência de toques genuínos e um crescente sentimento de medo.
Ainda que a inteligência artificial possa substituir muitas das atividades do nosso cotidiano, sabemos que dificilmente as habilidades relacionais serão substituídas.
Somos, por natureza, seres sociais e relacionais, como evidencia a nossa própria ancestralidade. Mas como podemos resgatar esses conhecimentos para construir futuros mais humanos para a sala de aula? Como relacionamentos autênticos podem contribuir para um aprendizado mais significativo e colaborativo?
Ser uma espécie social traz inúmeras vantagens para nós, como viver mais e sermos mais saudáveis. Em contrapartida, a solidão pode nos adoecer e até antecipar nossa morte. Neste sentido, pesquisas científicas demonstram que a palavra é uma ferramenta poderosa para regular nossos corpos. Na interação com o outro, palavras têm um impacto direto na atividade cerebral, podendo influenciar a frequência cardíaca, o metabolismo, o sistema imunológico, hormônios e outros mecanismos internos.
De acordo com a cientista Lisa Feldman Barrett (2022), o poder das palavras não é apenas uma metáfora. Palavras podem, literalmente, moldar nossa saúde. Doses pequenas, como um comentário desagradável ou um insulto isolado, podem nos fazer sentir mal momentaneamente, mas sem causar danos graves ao corpo ou cérebro. No entanto, a exposição repetida e prolongada a palavras de insulto ou estresse verbal pode, de fato, causar prejuízos físicos ao cérebro.
Isso não tem a ver com sermos fracos ou excessivamente sensíveis, mas com nossa condição humana: nosso sistema nervoso está profundamente conectado ao comportamento de outros seres humanos. Como alerta Lisa: “A melhor coisa para o nosso sistema nervoso é outro ser humano. A pior coisa para o nosso sistema nervoso também é outro ser humano”.
Um trágico exemplo disso ocorreu na Romênia, durante a década de 1960. Uma política governamental proibiu a maioria dos métodos contraceptivos, com o objetivo de aumentar a população e transformar o país em uma nação forte e poderosa.
Embora tenha havido um aumento significativo no número de nascimentos, muitas famílias não tinham condições de sustentar os filhos. Como consequência, milhares de crianças foram enviadas a orfanatos, onde enfrentaram maus-tratos e negligência.
Privadas de contato humano, interação e estimulação adequados, essas crianças sofreram grave descaso social, o que resultou em uma geração de órfãos que cresceram com deficiências intelectuais e emocionais severas.
Quando entramos pela primeira vez em uma sala de aula e nos deparamos com nossos estudantes, não sabemos nada sobre sua história, suas vivências ou os eventos traumáticos e desafiadores pelos quais possam ter passado. O que sabemos é que essas experiências carregam componentes psicológicos e emocionais que moldam sua percepção e comportamento ao longo da vida.
Uma abordagem interessante para entender esses impactos é a Terapia do esquema, que propõe que comportamentos desadaptativos formados na infância podem persistir na vida adulta, influenciando, inclusive, as dinâmicas da sala de aula.
Segundo essa teoria, quando nossas necessidades emocionais básicas não são atendidas, corremos o risco de desenvolver esquemas desadaptativos — padrões emocionais e cognitivos prejudiciais que afetam nossa maneira de pensar, sentir e agir. Veja um resumo no quadro a seguir:
Embora professores não sejam figuras de apego primárias dos estudantes, o contato diário e as experiências emocionais constantes podem exercer um papel de vínculo afetivo seguro no ambiente educacional, especialmente para alunos que enfrentam negligência ou dificuldades familiares.
Professores podem atuar como figuras de apego seguras, quando oferecem estabilidade emocional aos estudantes, atuando como referência comportamental e promovendo a sensação de cuidado e estabilidade. Também quando conseguem identificar que muitos dos comportamentos dos estudantes podem ser frutos de esquemas desadaptativos gerados na infância e que prevalecem impactando a vida adulta, ainda que de forma inconsciente.
Promover atitudes preventivas e reparadoras, como escuta ativa, e a validação das emoções contribuem para construção de um relacionamento autêntico na sala de aula. Vamos ver como fazer isso na prática?
A sua provocação para nossa conversa foi como podemos promover trocas genuínas entre os estudantes favorecendo a interação humana. Escolhi trazer o conceito de relacionamento autêntico, ou Authentic Relating (AR). Trata-se de uma prática que busca criar conexões humanas profundas, significativas e baseadas na autenticidade mútua. Essa abordagem enfatiza a comunicação consciente e a expressão genuína, onde as pessoas se mostram como realmente são, sem máscaras ou manipulações, enquanto também reconhecem e aceitam o outro de forma aberta e empática.
Em uma era de relações digitais em que filtros escondem nossas vulnerabilidades e relacionamentos são idealizados dentro das nossas próprias bolhas de interesses, resgatar o relacionamento autêntico entre professores e estudantes se torna fundamental.
A prática de relacionamentos autênticos promove a construção de conexões mais profundas e satisfatórias, incentivando o desenvolvimento da autoconsciência e do autoconhecimento. Ao criar um ambiente de confiança e colaboração, essas interações fortalecem vínculos interpessoais e aprimoram significativamente as habilidades de comunicação, permitindo trocas mais genuínas e eficazes. Conheça os princípios do relacionamento autêntico:
Como professores, podemos fomentar relacionamentos autênticos em nossas salas de aula ao abraçar a imprevisibilidade, criando espaço para as contribuições dos estudantes, permitindo que o silêncio tenha lugar entre as conversas e cultivando uma curiosidade genuína sobre o outro.
Existem vários jogos e exercícios que podem nos ajudar a praticar o relacionamento autêntico não só nas salas de aula, mas nas nossas relações. Experimente na sua próxima conversa:
Além destes exercícios, existem jogos de relacionamento autêntico que são atividades projetadas para promover conexões humanas mais profundas e significativas. Esses jogos fornecem uma estrutura que facilita a comunicação genuína, permitindo que os participantes compartilhem experiências, sentimentos e pensamentos de maneira aberta e honesta. Veja alguns exemplos:
– O jogo da percepção: onde duas pessoas alternam observações sobre o que estão percebendo no momento. O interlocutor A começa: “aqui perto de você, eu noto que…” Na sequência, o interlocutor B responde ”ouvindo isso, eu noto…”. Você pode dar um tempo de dois a cinco minutos para que as percepções sejam levantadas.
– Você gostaria: este jogo foca em sintonizar o desejo, independentemente de ser atendido ou não, e em reconhecer a liberdade de ambos os participantes em expressar suas vontades e limites. Em pares, uma pessoa (A) faz pedidos específicos à outra (B) por um período determinado, podendo ser físicos, emocionais ou mentais. Por exemplo: você poderia me dar um abraço? Você poderia me falar o seu maior defeito? Você poderia me contar o que pensa sobre mim? B decide se atende, recusa ou propõe uma alternativa, enquanto A continua ajustando os pedidos para serem claros e específicos, respeitando os limites de B. O objetivo é explorar o desejo, a comunicação clara e a negociação de forma autêntica.
Para você explorar ainda mais este tema, deixei o site “Autenticidade e Felicidade“, da Universidade da Pensilvânia. Ele foi desenvolvido pelo Centro de Psicologia Positiva sob a direção do Dr. Martin E. P. Seligman, e oferece recursos gratuitos para aprender sobre Psicologia Positiva, incluindo leituras, vídeos, pesquisas e questionários com feedback. No link, você pode fazer um teste gratuito para te ajudar a compreender onde a curiosidade e a autenticidade se localizam na sua lista de forças nas relações que estabelece com os outros. Espero que goste.
“É impossível se conectar a outra pessoa a menos que sejamos curiosos sobre ela” – Niobe Way
Essa foi a Larissa no Divã, o próximo pode ser você. Envie seu relato e participe das próximas colunas.
Karina Nones Tomelin
Educadora, psicóloga, pedagoga, mestre em Educação. Colunista na revista Ensino Superior
BARRETT, L. F. Sete lições e meia sobre o cérebro (P. Vidal, Trad.). Lisboa: Temas e Debates, 2022.
HAN, B.-C. O espírito da esperança: Contra a sociedade do medo (M. C. Mota, Trad.). Petrópolis: Editora Vozes, 2024.
Por: Karina Tomelin | 29/11/2024