É fundamental que os professores reflitam para quem e como estão ensinando
No divã: Raphaela Vasconcelos Gomes Barreto
Sou Raphaela Barreto, docente do ensino superior e amo estar com meus discentes. Sinto-me privilegiada em ver jovens e adultos descobrindo o mundo ao seu redor, tendo espaço para questionar com liberdade e errar com segurança, enquanto aprendem. Eu também estou em constante aprendizado e transformação, especialmente quando estou com eles.
Como muitos dos meus colegas de profissão, já fui uma professora focada em finalizar conteúdos e falar tudo o que eu considerava importante. Até que passei pela experiência transformadora de vivenciar, lá em 2018, uma formação docente que mudou completamente a minha mente e o meu olhar para com meus alunos, minha profissão e minhas atitudes. A mudança interior se refletiu em uma transformação exterior. Enquanto antes eu era focada “no conteúdo da disciplina”, passei a ser focada no meu alvo principal. Deixei de ser uma professora repetitiva, que se importava demasiadamente em “cumprir o cronograma” todos os semestres da mesma forma, e passei a perceber minha verdadeira responsabilidade: a de formar pessoas. Isso vai muito além de conteúdos.
Esta mudança me tirou de uma zona bastante confortável. Mas ninguém se desenvolve no conforto, não é mesmo? Por isso, prossigo estudando, testando, errando e acertando. Todos os semestres eu me desafio a ser diferente porque as pessoas que chegam até mim não são as mesmas! Isso me leva ao movimento da reinvenção constante. De não me acostumar com o que já foi feito e tentar, da melhor forma, mudar para ser uma mediadora eficaz da aprendizagem de cada estudante.
Embora estejamos em um ponto de inflexão da educação em todo o mundo, com mudanças completamente inimagináveis por todos nós até então, permaneço observando muita resistência de professores em mudar. Observo que muitos colegas querem mudanças em suas salas de aula, mas não mudam seus comportamentos profissionais, não mudam seus hábitos, não saem da zona confortável, mesmo com tudo mudando ao nosso redor. Como trabalhar essa transformação no fazer docente? Afinal, de que adianta o professor se expor a cursos e formações, se esses novos ensinamentos não se tornarem realidade na prática? Chegamos a um ponto em que “apenas” abrir as mentes para novas ideias não é mais suficiente, se estas ideias não chegarem ao campo da realidade. Isso realmente precisa mudar.
Olá, Raphaela. Obrigada por escrever e contar como foi para você passar por uma experiência transformadora, que a renovou enquanto professora. Sabia que o tema que trouxe é um dos mais debatidos aqui no divã? Já falei sobre ele outras duas vezes:
Neste primeiro artigo: Como motivar os professores a aplicarem o que aprendem na formação continuada?”, explorei os desafios enfrentados na implementação de aprendizados adquiridos em programas de formação continuada para professores. Destaquei a importância de objetivos claros, lideranças inspiradoras e avaliação dos resultados para garantir que os professores apliquem efetivamente o que aprenderam em suas práticas educacionais.
Já neste outro, Estratégias formativas para desenvolver competências docentes, enfatizei a necessidade de desenvolver competências mediadoras nos professores universitários. Isso inclui compreender os desafios atuais, adotar metodologias inovadoras e investir no autoconhecimento e desenvolvimento humano. Programas de qualificação personalizados e atividades formativas são essenciais para garantir o crescimento contínuo das competências docentes.
Para conversar com você neste divã, resolvi voltar às bases da psicologia e seus avanços recentes em pesquisas de neurociência e psicologia cognitiva. Para além do que sabemos sobre a mudança de comportamento das tradições behavioristas, como a lei do efeito de Thorndike ou a teoria do condicionamento operante de Skinner, as teorias mais recentes sobre comportamento humano capturam a complexidade da estruturação de hábitos e faz descobertas significativas sobre os mecanismos por trás da busca de objetivos.
Você trouxe um elemento-chave que contribuiu para a transformação da sua prática, enfatizou, ainda, que foi algo de dentro para fora, partindo de aspectos intrínsecos e pessoais e transbordou para a sala de aula. Como é possível contagiar outros professores de forma semelhante a sua?
Como você sabe, a tendência natural à inércia é uma força poderosa em nossas vidas. É incrivelmente tentador e confortável permanecer imóvel, conservar nossa energia. A introdução de qualquer comportamento novo requer um esforço considerável. Por exemplo:
Mesmo que você esteja motivada a mudar e acredita nos benefícios desta mudança no seu futuro, por que, muitas vezes, ficamos somente nas promessas? Para muitos de nós, metade das resoluções de ano novo não se concretizam e se pulverizam no tempo que nos distancia entre o presente e o futuro.
É comum confiarmos na ideia de que vamos começar a dieta na próxima segunda-feira, em vez de dar o primeiro passo hoje mesmo. Nossas convicções, muitas vezes, superam nossas ações, revelando que, apesar de nossa capacidade racional, nossa tomada de decisão não é tão lógica quanto imaginamos. Grande parte de nossas ações é impulsionada pelo piloto automático, sem que realmente reflitamos ou estejamos plenamente conscientes do que estamos fazendo no momento em que o fazemos.
Elliot T. Berkman, um psicólogo e pesquisador conhecido por seu trabalho na área da neurociência cognitiva e psicologia social, é especialmente reconhecido por suas pesquisas sobre autocontrole, tomada de decisão e mudança comportamental. Em seu artigo “A neurociência dos objetivos e da mudança de comportamento”, ele explora as duas dimensões que influenciam nossos comportamentos. A primeira dimensão se refere às habilidades e conhecimentos necessários para realizar uma ação, enquanto a segunda dimensão diz respeito ao desejo e à importância desse comportamento. Ele as denomina como “caminho” e “vontade”, respectivamente. O “caminho” abrange a capacidade de executar a ação e os processos cognitivos envolvidos, enquanto a “vontade” está relacionada à motivação e ao impulso para realizar a ação.
Essas duas dimensões apresentadas por Elliot dão origem a quatro grandes tipos de ação. Acompanhe, na figura, como nossos comportamentos se movimentam dentro destes eixos. O superior esquerdo trata da rotina complexa. Nele, requer algum nível de habilidade, mas pouca motivação. Um exemplo é a produção de avaliações por um professor, é uma ação que possui certa complexidade, mas é rotineira para a maioria dos professores, inclusive a sua aplicação.
No comportamento de rotina simples, no quadrante inferior esquerdo, requer pouca habilidade e pouca motivação, por exemplo, a ação do professor ao fazer a chamada na sala de aula. Esses comportamentos são fáceis e sem esforço de forma que dificilmente pensamos neles. No quadrante inferior direito, temos o comportamento simples e novo. Requer alta motivação, mas pouca habilidade para ser realizado. Por exemplo, no primeiro dia de aula, a apresentação do plano da disciplina do semestre. E, por fim, o quadrante mais interessante que é o complexo e novo, que requer alta habilidade e alta motivação. O professor que está no primeiro dia do semestre com uma turma nova e uma disciplina completamente nova.
O quadro de Berkman nos dá algumas orientações de como atuar na mudança de comportamento. O primeiro passo é diagnosticar a origem da dificuldade. Ele propõe que façamos algumas perguntas e eu adaptei algumas para o contexto educacional:
O segundo passo é aprofundar nosso entendimento sobre a natureza da motivação. Isso envolve explorar se o professor está motivado, seja para alcançar resultados positivos ou evitar resultados negativos. Além disso, é importante analisar se essa motivação se estende a outros comportamentos além daqueles ligados à mudança desejada. Também devemos avaliar se o professor possui as habilidades necessárias para facilitar a mudança de maneira segura e eficaz, ou se está preso em métodos tradicionais que oferecem pouca flexibilidade para novas abordagens.
Sabemos, hoje, que nossos cérebros nunca perdem a capacidade de mudar, porém quanto mais jovens, mais fácil. À medida que envelhecemos, mais energia é necessária para a mudança, mas ainda assim temos neuroplasticidade para mudar.
As mudanças ficam mais difíceis durante nosso envelhecimento porque nossos comportamentos operam de acordo com paradigmas que vão se cristalizando, assim como as sinapses e circuitos que se consolidam em um mesmo caminho e direção. Mudar nossa resposta a certos estímulos exige muito mais esforço. É como mover o trem para um novo trilho, mas que ainda não está construído.
Na sala de aula, vivemos rotinas consolidadas em nosso cérebro desde que começamos a frequentar a escola. Estas conexões que se comunicam com frequência se fortalecem de tal forma que à medida que estas mensagens percorrem o mesmo caminho vão sendo transmitidas cada vez mais rápido. Ler, dirigir, andar de bicicleta são exemplos de comportamentos complexos, mas que realizamos automaticamente por conta das vias neurais já consolidadas.
Quando você comenta, Raphaela, que “apenas abrir as mentes para novas ideias não é mais suficiente, se estas ideias não chegarem ao campo da realidade,” é porque não adianta somente falar sobre estes novos caminhos, novas metodologias, recursos, estratégias para uma sala de aula mais inovadora. Precisamos vivenciar, praticar, exercitar. Significa que, à medida que promovemos novas atividades, treinamos nossos cérebros para novos modelos, criamos novos caminhos neurais. Ao se fortalecerem, o comportamento novo se torna normal e aulas mais ativas se tornam a regra e não a exceção.
Mas esses comportamentos também são frutos da nossa mentalidade sobre o mundo. Você citou sua relação com o desafio, com o erro, com o novo, demonstrando ter uma mentalidade de crescimento, como nos apresenta Carol Dweck, em seu livro Mindset: A Nova Psicologia do Sucesso, Carol classifica dois tipos de mentalidade: a fixa e a de crescimento. Fiz uma tradução de como estes dois tipos de mentalidade interferem no trabalho docente.
Professores com uma mentalidade fixa ou de crescimento costumam ter um padrão de comportamento que se repete na forma como vê a docência, a sua relação com os estudantes, com outros colegas professores e com os desafios da sala de aula. Veja na imagem:
Além de indicar o livro da Carol Dweck, também vou deixar um outro Como Aprendemos? — Uma Abordagem Científica da Aprendizagem e do Ensino. Ele explora os processos de aprendizagem e ensino sob uma perspectiva científica examinando as teorias, métodos e descobertas da psicologia cognitiva, neurociência e outras disciplinas relacionadas para entender como as pessoas aprendem melhor e como os educadores podem facilitar esse processo de maneira eficaz. O livro aborda questões como a memória, a atenção, a motivação e a aplicação prática desses conceitos no contexto educacional.
Umas das frases que quero destacar deste livro é a de que “aprender e ensinar fazem parte da nossa natureza, é possível aprender sem a necessidade da interação social, porém ensinar é um ato social por definição”.
Assim, é fundamental que nós, professores, reflitamos para quem estamos ensinando e como estamos ensinando, já que, com certeza, não deve ser para nós mesmos.
Espero ter contribuído com as suas reflexões e indagações, que possamos motivar mais professores a serem protagonistas da sua própria aprendizagem.
Essa foi a professora Raphaela Barreto no Divã, o próximo pode ser você. Envie seu relato para mim e participe das próximas colunas.
Karina Nones Tomelin
Educadora, psicóloga, pedagoga, mestre em Educação. Colunista na Revista Ensino Superior
Por: Karina Tomelin | 16/05/2024