NOTÍCIA
Cesar Callegari, presidente do Conselho Nacional de Educação, fala sobre garantir a qualidade dos cursos EAD e das licenciaturas
Publicado em 07/02/2025
Sociólogo, ativista e consultor educacional, Cesar Callegari carrega notável bagagem no âmbito da educação brasileira. Eleito o novo presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) em novembro, passará a liderar o órgão pelo próximo biênio.
Além de presidente do Instituto Brasileiro de Sociologia Aplicada — IBSA, Cesar Callegari foi secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) e, entre 2013 e 2014, secretário de Educação do município de São Paulo, quando implantou a Reforma Educacional “Mais Educação São Paulo”.
Sua relação com o CNE é de longa data. Membro do conselho entre 2004 e 2018, presidiu a Comissão de Elaboração da Base Nacional Comum Curricular e a Câmara de Educação Básica por dois mandatos. Em agosto de 2024, voltou ao CNE após ser nomeado pelo presidente Lula como um dos oito novos conselheiros da Câmara de Educação Básica.
Nesta entrevista, Callegari comenta as ações do MEC voltadas à melhoria da qualidade do EAD e das licenciaturas e enfatiza a necessidade de uma “pactuação nacional” para a formação de uma nova geração de professores.
O EAD ocupa uma posição central no sistema de educação superior no Brasil e pode proporcionar aos estudantes experiências tão ricas quanto os cursos presenciais, desde que os presenciais sejam bons. Não adianta comparar egressos de cursos EAD com egressos de cursos presenciais de má qualidade.
O padrão de qualidade tem de ser elevado. Está aí uma realidade que precisa ser enfrentada e temos de tomar várias providências. O marco regulatório pode estabelecer uma série de dispositivos que garantam a qualidade da formação desse profissional formado no EAD.
Mas é preciso o efetivo compromisso com a qualidade de ensino e aprendizagem. Todas as discussões de que tenho participado vão na direção de estabelecer condições efetivas para que a qualidade do ensino e aprendizagem seja alcançada. Estou muito otimista em relação a isso.
Nossa expectativa é que, em fevereiro, a Seres, Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior, apresente a proposta de marco regulatório. No CNE, já foi constituída uma comissão específica para cuidar desse assunto, inclusive com aqueles que já participaram ativamente de discussões anteriores. Vamos trabalhar com base no marco regulatório a ser divulgado no sentido de completar orientações e diretrizes.
Essas medidas anunciadas são muito positivas. Elas representam uma demanda antiga do setor educacional, no sentido de valorização do magistério, mas a implementação dessas medidas precisa ser muito bem monitorada, para ajustes no processo. O MEC não é o único player do setor. As universidades e demais instituições de educação superior precisam estar comprometidas, além das escolas das redes pública e particular de ensino.
O Brasil, na minha visão, precisa construir uma nova geração de professores. Essa nova geração precisa passar por um modelo de formação com período integral, bolsas de permanência, um efetivo de integração com as escolas de educação básica e também com o setor produtivo, principalmente quando se trata de formação de professores ligados à formação técnico-profissional. Os estágios, outro grande problema, têm de ser significativos, relevantes, que haja realmente uma formação docente com base na prática, naquilo que acontece efetivamente nas escolas.
Temos de fazer um reforço no Pibid [Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência], que já é coroado de êxito e precisa ser ampliado e reforçado. Nesse sistema de formação de uma nova geração, temos de ter avaliações no meio e no final dos cursos de licenciatura. Não podemos esperar que o desastre aconteça para reconhecer que algo tem de ser feito. Precisamos atuar durante o processo de formação desse estudante que vai se transformar num professor de educação básica.
O que falta? Não falta vontade política, mas ela não está em toda parte. Há setores no Brasil que têm interesse numa educação precarizada como estratégia de controle social e manutenção de privilégios. Isso precisa mudar. A maneira mais efetiva de mudar é construir uma educação de qualidade e isso só pode acontecer com a formação de uma nova geração de professores.
A carreira docente tem de ser nacional, mesmo que ela seja organizada pelos estados, municípios e pelas escolas privadas. Nessa carreira nacional, é necessário prever uma remuneração para atrair os melhores e mais vocacionados. A carreira docente no país não é atraente, porque os salários são baixos, as condições de trabalho e de contratação são precárias.
Uma das medidas importantes tomadas recentemente [outubro de 2024] é o Concurso Nacional Unificado da Educação, que precisa ter a adesão dos sistemas de ensino, principalmente das redes municipais e estaduais. É muito importante para elevar a régua no processo seletivo para ingresso na carreira de professores. Temos de ter esse senso de urgência; só assim é possível construir um Brasil que seja efetivamente democrático, inclusivo, desenvolvido, socialmente justo.
Numa linha geral, o Brasil dispõe de meios para financiar essa grande operação estratégica. Sabemos que depende de condições, inclusive políticas, para que isso seja implementado. Há outras prioridades e um campo de disputa muito grande em relação a recursos públicos. Mas o Brasil tem uma estrutura que é gigante. Temos uma grande rede de educação básica, com 2.3 milhões de professores na educação básica. Eles precisam ser valorizados e reconhecidos. É com eles que nós contamos hoje; precisam de apoio e condições de trabalho e de salários.
Temos muitas instituições públicas e privadas que são de boa qualidade e nelas temos excelentes profissionais formadores de professores. Também temos tecnologia para isso. Desde os recursos tecnológicos mais tradicionais, como sistemas de produção e distribuição de livros e materiais didáticos, até as novas tecnologias de educação a distância estão ao nosso dispor e podem ser mobilizados. Repetindo: as medidas tomadas agora pelo governo federal são positivas. Elas contribuem inclusive para que possamos desenvolver um projeto mais estratégico nessa área.
Precisa haver uma pactuação nacional. Como eu disse, há muitos atores nesse processo. As escolas, os professores, diretores, secretários de educação, governos estaduais e municipais, os conselhos, as escolas privadas. Na minha visão, o MEC dá um passo de liderança para a construção dessa pactuação nacional e é ela que garantirá que tudo dê certo. Claro, também precisa haver um sistema de monitoramento para que essas interações e articulações sejam acompanhadas o tempo inteiro, para ver o que está dando certo e o que precisa ser aperfeiçoado.
Não basta um programa de governo; é preciso um compromisso estratégico que envolva todos os atores da sociedade brasileira.
Concordo. Lembrando que as escolas de educação básica são dos estados, municípios e da iniciativa privada. Então, referindo-me à questão anterior, tem de haver essa pactuação que o MEC está buscando. Hoje, vemos que uma professora que acabou de se formar em pedagogia, por exemplo, e que traz déficits formativos severos, acaba sendo colocada em momentos que são absolutamente cruciais, como a alfabetização de crianças. Como garantir a alfabetização de crianças na idade certa se a professora tem déficits na própria formação?
Então, não são apenas áreas territoriais no Brasil que são difíceis para o exercício docente. São momentos estratégicos para a formação do estudante brasileiro, e me refiro aqui ao que considero o mais estratégico, que é garantir a alfabetização na idade certa como direito realizado. E, para que isso aconteça, os melhores profissionais têm de ser colocados nessa fase do desenvolvimento educacional.
Não podemos precarizar, improvisar e nem esperar que haja bons resultados na alfabetização de crianças no Brasil – um país em que mais da metade das crianças chegam ao terceiro ano sem que estejam alfabetizadas – se os profissionais que chegam para essa missão não estão devidamente qualificados para tanto. Isso tem de mudar. As escolas que vão receber os novos professores que ingressam em seus quadros devem apoiá-los e garantir que os melhores profissionais estejam nos momentos mais críticos da formação da criança e do jovem. No meu entender, sempre são momentos dos anos iniciais do ensino fundamental.
Temos sido diligentes no sentido de estabelecer nas diretrizes curriculares e demais orientações normativas que as questões de equidade racial e de gênero sejam sempre tratadas com a máxima importância. O Brasil, no campo da educação, deve ser um contraponto ao negacionismo e posições retrógradas que vão se avolumando pelo mundo. As propostas educacionais do governo Trump são absolutamente retrógradas e negacionistas em relação a tudo isso.
A nossa visão é que educação de qualidade para poucos não é qualidade. Tem de ser necessariamente inclusiva, levar em consideração as múltiplas realidades dos estudantes brasileiros, dos seus professores também. Essa inclusão deve ser em todas as dimensões, socioeconômica, racial, jovens e adultos com deficiências ou dificuldades maiores no sentido do seu desenvolvimento, enfim, equidade e inclusão são compromissos que temos mantido e reforçado.
Acabamos de publicar as novas diretrizes do ensino médio, estamos revendo outras diretrizes para a educação básica e na revisão ou atualização das diretrizes curriculares para a educação superior esse tema é absolutamente central. Como eu disse, temos a responsabilidade do ponto de vista global de ser um contraponto ao negacionismo, ao atraso e aos processos excludentes que têm sido apresentados em alguns lugares do mundo.
O Brasil é a oitava economia do mundo. E não só. Tem riqueza cultural, capacidade de influência, não tão grande quanto outros países, mas tem a responsabilidade que precisa ser colocada nessas disputas. No campo da educação, não podemos recuar, não devemos nos acovardar ou silenciar diante dessas disputas.
Essa questão ambiental e da emergência climática e todas as repercussões que isso tem em relação à vida das pessoas, dos animais, do planeta de maneira geral, como incumbência específica do CNE, devem estar presentes nas orientações curriculares e na organização do sistema educacional, o tempo todo.
Este ano teremos a COP30, que será um momento importante de visibilidade para o Brasil. Esse tema tem sido recorrente e vamos reforçar que deve ser tratado com cuidado e prioridade nas Câmaras da Educação Básica e do Ensino Superior. Da mesma maneira que falamos das questões de equidade de gênero e racial, o Brasil tem a responsabilidade de combater o negacionismo nessa área ambiental.
Em relação à criação dessa universidade, considero uma ação muito positiva. O CNE tem tido uma atuação importante no que diz respeito à educação escolar indígena. Na minha primeira presença no CNE, criamos as diretrizes curriculares para a educação escolar indígena, inclusive com uma mudança radical nos dispositivos, que eram desde a época da ditadura e impunham a língua portuguesa como única na educação escolar indígena. Mudamos isso completamente; a primeira língua é a do povo, a língua portuguesa é a segunda.
Na Câmara da Educação Básica, temos trabalhado nas orientações curriculares em relação à educação escolar indígena. Na Câmara da Educação Superior, quando essa universidade for criada, mesmo que seja uma universidade e tenha seu nível de autonomia, é possível que sejamos demandados a contribuir. Está no nosso radar.
Sempre fazemos audiências e consultas públicas, junto ao MEC, que tem instrumentos mais poderosos para essas articulações. Não temos um canal próprio. Temos consciência de que é preciso aperfeiçoar. A ideia é sempre mobilizar os meios, inclusive os à distância, para que possamos ser um canal de audiência das diferentes posições que existem na sociedade brasileira.
É uma questão que afeta a educação básica, conforme a legislação que foi recentemente aprovada, e o CNE vai participar do processo de regulamentação. Haverá dois estágios. No primeiro, a regulamentação que será feita pelo próprio MEC e, em paralelo, a produção de normas complementares que possam orientar os sistemas de ensino. A lei vem muito na linha de uma proibição ampla, geral e irrestrita, uma vedação. Mas há situações muito diferentes nas escolas, inclusive há muita diferença entre crianças que estão na educação infantil e estudantes de ensino médio, e isso tem de ser levado em consideração. Assim como todo o apoio e formação necessários para os profissionais, sejam os da gestão escolar, sejam os próprios professores, as famílias.
Tudo isso será objeto de orientações complementares, normativas, infralegais, que o CNE vai produzir, em diálogo com os sistemas de ensino – as redes públicas e particulares de ensino, conselhos municipais e estaduais de educação, secretários municipais e estaduais de educação. É a maneira como produzimos. É diretriz do CNE e a minha, particularmente, que essas produções normativas sejam sempre resultantes de diálogo intenso com os diferentes atores do sistema educacional brasileiro.